Reflexões do Fundo do Copo – O Bom de Bico Argentino

breno3Tenho escrito para uma revista italiana, a Il Sommelier, vinculada à Federação Italiana de serviços de hotelaria e restauração (FISAR) e que tem uma versão para internet pelo site www.ilsommelier.com. É uma revista mais formal e faço esforço para escrever de modo mais impessoal, o que talvez tire o texto do perfil que costumo dar às minhas crônicas neste espaço de reflexões. O último artigo que escrevi para eles foi publicado na revista que ainda está no ar e acredito ter interesse para os brasileiros assim como para os europeus, por conta, talvez, da importância que a uva ícone argentina ganhou por aqui.

             O mundo do vinho levou um “susto bom” em 2001, quando o vinho Nicolás Catena Zapata – uma assemblage Cabernet Sauvignon/Malbec – ganhou destaque ao vencer numa degustação às cegas os grandes de Bordeaux e Napa Valley. Foi o grande debut da versão argentina da uva Malbec e, para quem não sabia do trabalho que se desenvolvia em Mendonza – a principal região produtora da Argentina – e só a conhecia pelo seu rude resultado em Cahor, seu lugar de origem no sul de Bordeaux, o resultado foi visto com descrédito.

             Anos se passaram e o desempenho da Malbec argentina deixou de ser novidade para se transformar em sucesso do público e da crítica. Da parte do público, o reconhecimento se nota pelos volumes de vinhos que são vendidos mundo afora e as divisas conseguidas pela Argentina através da exportação de seus vinhos e mosto, majoritariamente com origem na Malbec. Da parte da crítica especializada, é generalizada a aprovação que recebe, chegando até a ter o destaque do ano em revistas como Decanter, que, em 2008, deu a Nicolás Catena o seu “Decanter’s Man Of The Year”, um prêmio aos vinhos da América Latina em geral e aos argentinos em particular.

            Quinto produtor de vinhos do mundo, 11º exportador, a Argentina produziu 2,2 bilhões de kg de uva no ano de 2009. Este volume transformou-se em 1,2 bilhões de litros de vinho e mais de 387 milhões de litros de mosto (dados oficiais do Instituto Nacional da Vinicultura Argentina, publicados no http://www.inv.gov.ar/noticias.php?ind=1&id_nota=88). Esta safra é significativamente menor do que a anterior, algo em torno de 30% a menos em regiões de produção importante como Mendoza, por conta de um verão muito quente. Mas se o calor diminuiu a quantidade colhida, elevou o nível de concentração de açúcar, tradicionalmente alto, chegando a 12,9º para as uvas tintas em Mendoza e a 12,7º para as de San Juan.

            Estes números do INV argentino são referentes ao conjunto das uvas produzidas, entre as tantas cepas que se deram bem em solo platino, sendo que se a Malbec e Shiraz argentinas jogam para cima esta média, as italianas Bonarda – segunda variedade mais plantada do País – jogam a média para baixo. Pois a potência tânica da Malbec é impressionante, podendo atingir gradações que na Itália costumavam freqüentar apenas os vin santi, sendo extremamente comum os Malbec ultrapassarem a faixa dos 14º de gradação alcoólica … E haja álcool! Para se ter uma idéia, o melhor exemplo neste quesito é o San Pedro de Yacochuya de Salta que na safra de 2001 se apresentou com 15,8% de álcool.

          Ou seja, a Malbec é uma das grandes novidades deste século que se inicia, como pretendeu vaticinar Robert Parker em 2004, prevendo que esta seria uma das grandes uvas do mundo até 2015, nos moldes das grandes que não se internacionalizam como a nebiollo e a sangiovese grossa, por exemplo, expressões particulares de uma determinada região do mundo e não uvas que se dão bem em qualquer solo e condições climáticas, como parecem ser as Cabernets e Chardonnays, as Syrah/Shiraz e Sauvignon Blanc, que passeiam por todos as vinhas com grande desenvoltura.

          Malbec tornou-se uma espécie de porta de entrada para o mundo do vinho, ao menos para muitos jovens urbanos no Brasil, que não tinham o hábito de beber vinho. Ela tornou-se responsável por uma espécie de “terceira onda” de consumo, que começou entre os brasileiros com os vinhos alemães de casco azul e continuou com os lambruscos italianos. Seu grande atrativo está no seu pronunciado sweet-point-attack, um sabor de fruta em compota muito fácil de gostar. Mesmo quando não muito bem elaborado e o seu lado selvagem de amargo retro-gosto se faz presente – o doce de uvas bem maduras, o álcool muitas vezes bem dominado, a madeira – muitas vezes produto de artifícios como chips de madeira depositados em grandes torres de alumínio; e vinhos mais em conta de vinícolas como o Fúria da Finca La Célia, o Santelmo e tantas outras marcas fazem o maior sucesso entre a turma dos estreantes em vinho, com pouco dinheiro e pouca idade.

         Mas nem só vinhos de pouca qualidade se faz com Malbec. No estágio intermediário, quando a madeira geralmente é de barril de segundo uso e os cuidados na vinificação são muito maiores, encontramos vinhos interessantes, como os da Susana Balbo, os da Finca La Linda, os Terrazas, os Álamos de Catena Zapata, os vinhos do Mauricio Lorca e tantos outros. E ao chegar no Top, então, não há como negar a qualidade indiscutível atingida e encanta os novos apreciadores do vinho em todos os continentes. Os Top de Mauricio Lorca, o Clos de Los Siete do famoso e polêmico Michel Roland, os Catena Zapata, os Luigi Bosca, os Familia Marguery, os Yacochuya de Salta, os Ruca Malen e tantos outros encantam até o mais cético dos degustadores como eu.

        Veremos no mercado, o que esta safra mais reduzida e mais concentrada nos trará. Para os que se interessam só pela quantidade poderá trazer decepções, mas para quem aprecia o bom vinho, ela deverá ser muito bem vinda!

Mais um texto do amigo e colaborador, agora com participação quinzenal aos sábados, Breno Raigorodsky; 59, filósofo, publicitário, cronista, gourmet, juiz de vinho internacional e sommelier pela FISAR. Para acessar seus textos anteriores, clique em Crônicas do Breno, aqui do lado.