Coluna da Eliza – Foie Gras, Patrimônio Culinário e Cultural da França

      A Eliza voltou, e trouxe na bagagem muitas experiências que estará compartilhando conosco em sua coluna quinzenal por aqui em Falando de Vinhos. Nem tudo, no entanto, será sobre vinhos, pois vivendo por dois anos na região de Montpelier as experiências são também gastronômicas e culturais.  Hoje fala de um produto que para muitos é tabu e para outros uma delicatesse, porém sem duvida alguma é um clássico francês!

         

      Nunca vou esquecer do meu primeiro contato com essa especialidade francesa. Restaurante La Vecchia Cucina do Chef Sergio Arno em São Paulo… jantar festivo… experimentei sem saber o que estava comendo, achei simplesmente delicioso! Depois de saborear metade da entrada, decidi perguntar para o meu “vizinho” o nome de tamanha iguaria… confesso que bateu uma dor no coração… eu nunca tinha ouvido falar “bem” do foie gras… conhecia somente o discurso do fígado gordo e doente do pato que foi forçado a comer e nada mais. Mas a gula fala mais alto. Comi tudo.

          Hoje, sou consumidora moderada. Depois de experimentar e re-experimentar diferentes marcas e tipos de preparação durante os meus 2 anos de imersão na sociedade francesa, ler muito sobre o assunto e ouvir diferentes opniões por aqui, assumo que sou completamente apaixonada pelo seu sabor e sua textura, mas como somente quando tenho muita vontade. E você?

Um pouco de história

       Tudo deve ter começado às margens do rio Nilo. Segundo historiadores, os primeiros registros da engorda de gansos foram encontrados no Antigo Egito. Um desenho numa tumba de 4 mil e 500 anos é a grande testemunha dessa tradição: nele estão representados um ganso e uma escrava que o alimenta com figos.

            Acredita-se que os egípcios observaram que os gansos e os patos, que se preparavam para a longa viagem de migração, comiam muito mais para estocar a energia necessária na forma de gordura. Desta forma, reforçando o comportamento natural das aves migratórias, eles começaram a “incentivar” gansos a comer mais e mais. E, meu instinto me diz, que uma vez gordinhos, eles eram mais apetitosos.

            A prática fez sucesso e foi adotada pelos gregos e, em seguida, pelos romanos. Patos e gansos continuaram à ser engordados a base de figos durante todo o Império Romano. O fígado gordo, muito apreciado, ganhou o nome de Jecur Ficatum, ou seja, “fígado com figos”. Mais tarde, ainda no Império Romano, outros animais foram engordados com figos e o termo Ficaum, “figos” passou a ser utilizado em todas as criações. Ficaum, foie, fegato, fígado… a semelhança chama a atenção e não é uma coincidência: o fígado gordo fez tanto sucesso que o termo utilizado na época deu origem ao nome do orgão fígado nas línguas românicas.

            Após a queda do Império, a tradição foi mantida principalmente pelos judeus, que utilizavam a gordura do pato nas suas preparações culinárias. Mas o mais surpreendente é que, na França da idade média, o fígado gordo não conhecia barreiras econômicas, religiosas nem sociais. Os camponeses engordavam os seus próprios animais e os consumiam com regularidade, preparando-os de diferentes formas. Paradoxalmente, os reis também apreciavam muito a iguaria e o foie gras era servido nos banquetes reais.

            Com a descoberta das américas e do milho, Cristovão Colombo contribuiu, e muito, para o desenvolvimento da produção do foie gras. Prático e super adaptado à alimentação dos patos e gansos, o milho substituiu o figo, permitindo assim, uma rápida difusão da técnica de gavage, principalmente na região da Alsace e no suldoeste da França.

            Durante o século XIX, criaram-se as regras de produção e o processo industrial. A iguaria foi então difundida no mundo todo e tornou-se um símbolo festivo da culinária francesa.

            Hoje, o foie gras de canard faz parte da cultura do país e é patrimônio culinário e cultural protegido pela lei. Ele faz parte de uma gastronomia que, desde 2010, a Unesco reconheceu como Patrimônio cultural imaterial da humanidade. A arte de manger à la française, mundialmente conhecida, inclui todo o ritual, seus produtos de terroir e suas tradições…

 Definição e regras de produção

      A definição oficial é fortemente contestada pelas associações protetoras dos animais. “Fígado sadio de um pato ou ganso adulto, robusto e em boa saúde, criado segundo a tradição.” Será?

            Pois bem, segundo a tradição, os futuros patos e gansos gordos permanecem ao abrigo do primeiro dia de vida, até a 4ª ou a 5ª semana. Desde que as suas plumas estejam suficientemente espessas para protegê-los, eles ganham a liberdade e são criados soltos durante dois meses e meio. Nada de chocante, à primeira vista, eles parecem mais bem tratados que os nossos frangos de granja. No entanto, com cerca de 12 semanas de vida, já adultos, eles são confinados e submetidos à gavage. A polêmica se inicia neste momento. Eles vão receber uma alimentação controlada, forçada e progressiva, durante 2 semanas. E eles vão engordar, muito e muito rápido.

            Por lá o assunto não é tabu. A França é, de longe, a maior produtora e também a maior consumidora de foie gras do mundo. Um lar francês, a cada dois, o consome, especialmente nos dias de festa.

A Polêmica

         A gavage é uma prática condenada e proíbida em 13 países da União Européia.  Vegetarianos ou não, muitos a consideram uma crueldade sem justificativa. Esta prática consiste na ingestão forçada, com a ajuda de um funil metálico (também chamado de sonda gástrica), de uma pasta feita à base de milho, altamente calórica. Patos e gansos são obrigados a comer, pela ação da força física. Claro que esta prática pode ser considerada nada bonita de se ver, especialmente quando ela é realizada em grande escala e os animais são mantidos imobilizados… mas a verdade é que o aumento do consumo e a busca constante pela redução dos custos anda atropelando o bem estar animal em todas as criações… Assustador, não?

Bonne semaine à tous et à la prochaine!