Amigos do Vinho

Reflexões do Fundo do Copo – A Uva e Darwin

breno3           Por sugestão do dono do blog e-bocalivre, li o texto abaixo do Darwin, aquele mesmo que descobriu e provou que você e eu somos macacos pelados, bípedes, impossibilitados pela natureza a pular de galho em galho como nossos ancestrais. O cara meteu a mão em quase tudo que se movia e em quase tudo que não se movia. Estava adiante do seu tempo em muitos campos de estudo, incluindo ai nossa adorada e idolatrada uva.

          Traduzi, mal e porcamente, o artigo que se segue e que foi publicado no referido blog, e ele está aqui porque achei que havia nele interesse acumulado para todos aqueles que se dedicam à prática de clicar neste “Falando de Vinhos”. Não liguem não se ele não fala muito dos vinhos que você achou em sua última viagem á California, porque foi escrito em 1868, quando o Robert Parker ainda não tinha nascido para dar nota, certificar e aconselhar a abertura das garrafas que fazem parte de nossas adegas.

           Achei de grande interesse porque sempre fiquei com a pulga atrás da orelha, biólogo que não sou nem serei, de onde vem esta tal variedade de cepas egressas da vitivinifera, que sempre nos dizem, é muito mais legal, é muito melhor e superior que a outra tal, sua irmã Caim, a uva americana, que no máximo serve de uva de mesa (de sobremesa?). Como é que Cabernet é Cabernet e não é Shiraz? Vamos ver porquê e como:  

            A vinha (Vitis vinifera).— A versão mais aceita pelos estudiosos sobre a origem da uvas européias é que descendem de uma única espécie, que se encontra viva e cresce selvagem na Ásia Oriental, que tem sua origem na Era do Bronze na Itália e que foi recentemente encontrada em forma fóssil em um depósito de turfa no sul da França. Mas certos indícios levam os estudiosos a contestar esta paternidade única de todas as nossas variedades cultivadas. A semente da dúvida está nas características mutantes da videira, capaz de variar geneticamente por caminhos desconhecidos, apesar de reproduzir fundamentalmente suas propriedades através das sementes. E como veio sendo cultivada desde a mais remota antiguidade, ganhando novas variedades por onde passa, parece improvável ter apenas uma origem. Além do que, a tese da multiplicidade tem fundamento particular nas pesquisas de campo feitas por Clemente, que encontrou várias formas semi-selvagens numa floresta da Espanha.

          Podemos facilmente inferir que a vinha é uma planta que varia muito quando propagada pela semente devido à incrível variedade de formas adquiridas por ela, documentadas desde eras remotas. Novas variedades são produzidas todo ano, como exemplifica bem a variedade dourada, criada recentemente na Inglaterra, e que nasceu de uma outra preta sem ter havido qualquer cruzamento. Van Mons produziu uma grande variedade a partir de sementes de uma única vinha, que tinha sido isolada de todas as outras, inviabilizando – ao menos por uma geração – qualquer cruzamento. E as suas mudas apresentaram “les analogues de toutes lees sortes”, diferenciando-se em quase todos os caracteres, seja na fruta, seja em sua folhagem.

        As variedades cultivadas são extremamente numerosas; Count Odart acha possível que existam em todo o mundo 700 ou 800, talvez até 1.000 variedades, mas sequer um terço destes tem qualquer valor. No catálogo de frutas da Horticulture Gardens of London, publicado em 1842, foram enumeradas 99 variedades. Onde quer que haja plantio de vinha, apareceram novas variedades; Pallas descreve 24 na Criméia, enquanto que Burnes menciona 10 em Cabul. A classificação das variedades tem deixado perplexos muitos escritores e Count Odart opta por um sistema geográfico; mas não entrarei neste particular, e nem menos nas enormes diferenças existentes entre as variedades. Apenas para mostrar quanto é diversificado o desenvolvimento desta planta, pretendo especificar algumas particularidades expressivas, todas provenientes do respeitado trabalho de Odart.

         Simon classificou as uvas em dois grandes grupos, as de folhas rugosas e as de folhas lisas, mas ele mesmo admite que ao menos na variedade Rebazo, as folhas são tanto rugosas quanto lisas; Odart sustenta que algumas variedades têm nervuras não encontradas em outras plantas, enquanto que outras têm folhas rugosas quando jovens e envelhecem lisas. A Pedro-Ximenes tem como característica particular amarelar ao menos as nervuras de suas folhas no processo de amadurecimento, quando não deixa pintado de amarelo toda superfície da folha. A Barbera D’Asti é reconhecível por várias características; entre outras, “”por algumas das folhas, e sempre as dos ramos mais baixos, que se tornam repentinamente de uma cor vermelho escuro”. 

          Muitos autores classificam as uvas a partir do formato do bago, redondo ou oval; Odart admite o valor desta divisão, mas aponta para a Macabeo, que muitas vezes produz bagos pequenos e redondos e, ao mesmo tempo, bagos ovalados e grandes na mesma planta. Algumas, têm uma característica tão marcante que as distingue, como é o caso da Nebbiolo que “apresenta uma ligeira aderência na polpa que circunda a semente, perceptível quando o bago é cortado na transversal”. Uma uva do Reno é citada por amadurecer bem apenas quando o solo é seco, já que costuma apodrecer quando chove demais na época da colheita; ao contrário de uma variedade originária da Suiça, que só amadurece se houver umidade prolongada. Esta última brota apenas na primavera, mas seu fruto amadurece rápido; há ainda as que se dão bem demais com os efeitos do sol de abril e por isso acabam sofrendo com geadas. Enquanto a variedade Styrian tem talos quebradiços, o que faz os cachos caiam com facilidade – e a vinha citada é particularmente atraente para abelhas e vespas – outras têm galhos extremamente fortes, resistentes ao vento. 

           Outras tantas características poderiam ser citadas, mas os fatos apresentados são mais do que suficientes para mostrar como são variáveis os pequenos detalhes estruturais e constitucionais da videira. No período da grande doença do vinho na França, determinados grupos de antigas variedades sofreram muito mais do que outras. Entre elas, enquanto a de “Chasselas, tão variado, não teve sequer uma afortunada exceção”, outras sofreram muito menos; a verdadeira Borgonha mais antiga, por acaso, esteve praticamente livre da doença e a Carminat resistiu igualmente ao ataque.

            As uvas americanas, que pertencem a espécie diferente, escaparam integralmente da doença na França, o que faz supor que muitas dessas européias que melhor resistiram à doença devem ter adquirido – num nível inferior – as mesmas peculiaridades constitucionais das espécies americanas. (Charles Darwin, Variation of animals and plants under domestication, capitulo X, 1868. Tradução Breno Raigorodsky)

Mais um texto do amigo e colaborador, agora com participação quinzenal aos sábados, Breno Raigorodsky; 59, filósofo, publicitário, cronista, gourmet, juiz de vinho internacional e sommelier pela FISAR. Para acessar seus textos anteriores, clique em Crônicas do Breno, aqui do lado.

Reflexões do Fundo do Copo – A hierarquia do gosto e suas aberrações

breno3            Confesso que, por um ano, quando cursava o ginásio, gostava de misturar Crush com molho de mostarda. Confesso também; que uma das minhas cunhadas gosta de comer primeiro a sobremesa doce antes da comida salgada, que uma das minhas outras cunhadas só bebe vinho de sobremesa, mesmo que o prato servido seja uma salada, que tenho amigos que cortam o macarrão e outros que gostam tanto de Lambrusco amabile que estão pensando em não mais renovar o estoque de vinhos alemães de garrafa azul. Confesso que conheço e me relaciono com gente que é a favor da pena de morte, que pensaram em participar da campanha do Pitta, que votaram no Kassab, que acham que malbec é a melhor uva do mundo. A gente amolece com o tempo, até porque relativiza as certezas absolutas, até porque sabe então que não tem o dom de convencimento que achava poder ter sobre o gosto dos outros.

         De repente, o Lambrusco amabile é um avanço no gosto daquele amigo que só tomava Coca-cola. De repente o cara que votaria na pena de morte, nada mais é do que um iletrado indignado com a impunidade de um estado que não sabe exercer com competência o seu monopólio da repressão. De repente, o Pitta não é tão diferente, nem propõe coisas tão diferentes dos ex-vestais de plantão no poder central. Aprende-se a relativizar e conviver.

         O que faz hierarquizarmos o gosto, determinando que este gosto vale mais que aquele? Uma resposta boa seria que, em se tratando de alimentos, há aqueles que fazem mais pela saúde do que outros. Há mesmo até aquele que fazem mal… Se soubéssemos realmente quais fazem bem e quais fazem mal, pois o ingrediente vilão da vez, normalmente é perdoado no tempo seguinte. Agora estão até querendo perdoar a manteiga, dá pra acreditar? Evidentemente, não dá para relativizar tudo, perdoar tudo que a gente põe goela abaixo. Certos produtos são quimicamente criminosos, fazem mal mesmo, principalmente alguns produtos industrializados. Certas cachaças não fazem mal apenas no dia seguinte, fazem mal por muito mais tempo do que isso, já que utilizam as chamadas “cauda e cabeça” em seu processo, ou seja, metanol puro, levando àquele consumidor constante e incauto ao abraço da morte por cirrose. Em alguma medida, outras tantas bebidas conseguem driblar a vigilância pública e fazem mal de verdade, sem dó e sofismas.

          A confort food e o slowfood se unem ao vegetarianismo, à macrobiótica e à comida natural para afugentar o fast food, símbolo máximo da obesidade mórbida contemporânea. No entanto, a fastfood foi extremamente bem vinda e continua tendo sua graça e grande propriedade em todos os sentidos, inclusive nutricional. Afinal, quem descartaria um sanduiche de salsicha alsaciana num 1/3 de baguete, coberto de queijo gruyère picadinho, temperado com a melhor mostarda de Dijon? Não gosta de salsicha? Que tal um pasticcio de berinjela, uvas passas, cebola, tomate, pinolli, pimentão vermelho e berinjela, assados no forno, bem temperados com tomilho e azeite, recheando um sanduiche de pão rústico italiano?

         O gosto é evidentemente vinculado ao prazer e se o produto de maior qualidade não gera o mesmo prazer que o de menor qualidade, será avaliado como inferior por aquele que procura não apenas alimento no que come, mas sensações gratificantes de toda ordem psicológica e social. Confesso que conheço gente que tem especial tendência a gostar só do que os seus superiores gostam, assim como conheço gente que acha o máximo comer o que todos comem e gostam. A hierarquia pega o consumidor na sua falta de critérios, exatamente porque gosto é gosto. Numa ótima aula ministrada por Daniel Pinto na SBAV de São Paulo, todos fomos levados a concordar que o Lambrusco seco se harmonizava perfeitamente com sanduiche de mortadela, prática habitual na região de origem dos dois produtos, a Emilia Romagna. E vemos gente muito menos preparada do que o médico e professor citado a torcer o nariz para este produto tão vendido mundo afora.

          É enganosa a hierarquia do preço, que leva o ignorante a reconhecer mais valor no produto caro e menos no produto mais barato. Embora seja um princípio que encerra uma verdade relativa, deve ser usado com muita cautela. Um produtor que usa, para um dos seus vinhos, uma rolha maciça e grande para o seu vinho de guarda, que usa apenas barricas bordolesas de primeiro uso, cumpre requisitos de produção que permitem àquele vinho participar de um grupo de vinhos diferenciados, mas que não garantem um gosto superior ao seu outro vinho que usa barricas de quarto uso e screwcap. Eventualmente, o segundo é mais gostoso do que o primeiro. O que é garantido, é que o primeiro se portará melhor que o segundo, passado determinado número de anos de guarda. Esta é talvez a única certeza, no caso exemplificado.

           A composição do preço do vinho é regida exatamente da mesma forma que a composição de qualquer outro produto de mercado, ou seja, o valor que nele encerra, a saber, o custo real necessário para a sua produção em condições concretas de toda ordem, o sobre preço ou mais valia ou taxa de lucro socialmente aceita, mais injunções mercadológicas, como notas de avaliação dadas pelos certificadores, histórico de valor como os dos vinhos consumidos por pessoas admiradas e importantes – reis, presidentes, artistas de TV – e outros fatores mais conjunturais. O consumidor, porém, tem todo o direito de achar que o Romanée Conti é um vinho inferior ao malbec Santelmo… O que se pode fazer?

         Sobre o assunto, reproduzo, sem qualquer pretensão de esgotar o assunto – que, aliás, aponta para o infinito – um artigo publicado pelo o Estado de S. Paulo, em 09/08/2009, por Elias Thomé Saliba, sob o título de Passos Racionais da Incerteza –

Numa pesquisa de 2008, um grupo de especialistas deu nota alta para uma garrafa com etiqueta de US$ 90 e nota baixa para uma outra, com etiqueta de US$ 20, embora os sorrateiros pesquisadores tivessem enchido as duas com o mesmíssimo vinho. Até aí, nada de muito novo quanto à nossa capacidade de projetar expectativas: depois de ouvirem elogios a um filme, futuros espectadores tendem a gostar mais dele. A novidade é que, no mesmo momento do teste do vinho, a ressonância magnética mostrou que a área cerebral codificadora da nossa experiência do prazer, ficou muito mais ativa quando os voluntários tomavam o vinho que acreditavam ser o mais caro. Este é um, entre muitos e surpreendentes exemplos contidos em O andar do bêbado (Jorge Zahar, 264 pp., R$ 39 – Trad.: Diego Alfaro), do norte-americano Leonard Mlodinow. “Andar do bêbado”, metáfora usualmente empregada, desde Einstein, para designar o movimento aleatório das moléculas de água, serve para designar a maneira como os incontáveis avanços na informática, nanotecnologia e outras áreas vêm produzindo alterações radicais na compreensão do universo do acaso e do contingente.

Mais um texto do amigo e colaborador, agora com participação quinzenal aos sábados, Breno Raigorodsky; 59, filósofo, publicitário, cronista, gourmet, juiz de vinho internacional e sommelier pela FISAR. Para acessar seus textos anteriores, clique em Crônicas do Breno, aqui do lado.

Reflexões do Fundo do Copo – Bebericando Ensinamentos

breno3              Todos que vivem do vinho se vestem de uma autoridade impressionante para falar de tudo sobre vinho. Não me refiro apenas àquela vendedora de loja especializada, que se aproxima simpaticamente do cliente e ao se apresentar como vendedora com um largo sorriso no rosto dizendo “posso ajudar?” Todos do negócio, do motorista do caminhão que traz os produtos dos portos ao assessor para assuntos de contabilidade, todos se sentem em condições de sugerir um vinho que melhor harmoniza com determinado prato. A proximidade com bebida basta para que a pessoa faça um ar de entendido, porque ela pode citar quem é famoso e gosta de vinho, e isso gera uma aura de autoridade que impregna inclusive pessoas que sabem que pouco sabem.

            Mas não apenas os que vivem do vinho sabem dizer qual é a melhor fórmula para harmonizar. Pergunte ao seu colega aí ao lado, aquele que sempre tem alguma a dizer sobre o restaurante da hora, a loja de roupa mais quente do shopping, o happy hour mais concorrido. Ele certamente pode discursar sobre como o vinho X combina com o prato Y pelo tempo que for necessário! Porque entender de vinho e de harmonização é moda que grassa pelas terras do mundo inteiro. É universal e não é assunto restrito aos estudiosos, um pouco porque o principal da harmonização nada tem a ver com a precisão dos cientistas, mas tudo tem a ver com o mais comum dos bons sensos.

           Os entendidos aceitam duas formas de harmonia, por afinidade entre as propriedades do vinho e da comida, ou por contraste entre eles, descritas por autores de todas as origens, seguindo regras que misturam conhecimento laboratorial, histórico de harmonia e bom senso, num coquetel que aplica mais este ou mais aquele ingrediente conforme a história de cada um. José Ivan dos Santos, autor de dois livros “essenciais” de grande sucesso, publicados pela editora Senac SP e com quem dividi planos de trabalho conjunto, ensina a harmonizar igualmente por afinidade ou por contraste, no afã de reforçar determinado atributo presente no prato ou procurar no vinho uma correção a um determinado excesso, sem deixar de alertar que “não há casamentos perfeitos; o vinho e a comida não são exceção”. Faz sucesso, porque consegue agradar a todas as opiniões sem se comprometer com ninguém, ao contrário do personagem do moedor de farinha de uma fábula do La Fontaine “Le Meunier, son fils e l’Ane” que diz “é maluco quem pretende contentar, ao mesmo tempo, todo mundo e seu pai”.

          Quando dá alternativas para um lado e para o outro, quando mostra o lado incerto e paliativo das suas afirmações – que não são poucas – não afronta nenhuma certeza do consumidor, até porque não tem ele como ser autoritário em suas afirmativas… Porque afinal ele não é maluco para pretender contentar todo mundo e o pai, ao mesmo tempo, muito pelo contrário! Os harmonizadores que escrevem por ofício não devem ser crucificados por sugerir harmonia, um pouco daqui e um pouco dali: é possível respeitar a tradição regional, como os portugueses que bebem vinho tinto com bacalhau; por outro lado, que tradição seguir, se bebemos os brancos secos e ácidos, com o mesmo prato português, o peixe sem cabeça? Não se pode esquecer, é óbvio, os argumentos da untuosidade, do queijo, da madeira, do vinagre, do shoyu, da alcachofra, dos aspargos e todos os outros pretensamente definitivos…

           Tudo é mais relativo, quanto maior for o conhecimento, experiência e inteligência acumuladas nas reflexões. Parece ser o caso das que se encontra no livro oficial das academias dos Gastrônomos e da Culinária Francesa, publicado em 1971 em livro de bolso, sob o título Cozinha Francesa, Receitas clássicas de pratos tradicionais  (de onde, aliás, tirei a citação acima do La Fontaine) fica evidente a importância da tradição e do bom senso na hora de harmonizar, até porque existem fatores externos a este compromisso entre a bebida e a comida que podem influir ainda mais na escolha do vinho: o tamanho e a complexidade da refeição! Cada vinho e cada prato articulam-se uns com os outros, como músculos, nervos e ossos, uns com os da outra categoria e com os da sua própria condição. O que vem depois de uma salada… Ou melhor, o que contém a salada servida, combina com os ingredientes que compõem os pratos a seguir?

          Cabe refletir um minuto sobre a tradição e o bom senso, com os olhos no livro citado. Para a infelicidade dos conservadores, o “clássico”, que normalmente remete à tradição, foi moderno e transgressor algum dia… Antes de tornar-se clássico. E bom senso, ora, bom senso, nos dizeres de Antonio Gramsci em seus Cadernos do Cárcere, é um sentimento coletivo de um grupo social determinado, num momento da história igualmente determinada, um termômetro para saber quanto se está perto de uma nova mudança de mentalidade. Ou seja, mais uma vez, tanto o sentido da tradição e do clássico, quanto o sentido do bom senso estão em moto contínuo. Olhando de perto, quando o observador se confunde com o objeto de estudo, parecem coisas imutáveis e seguras. Olhando à distância ganham em movimento, desesperam aqueles que buscam alcançar a noção aristoteliana do “bom” como algo imutável.

          O “Cuisine Française” derruba toda a pose de gente que intenciona criar regras de casamento (mariaje) entre vinho e comida. Traduzido livremente diz logo em seu primeiro parágrafo “na verdade, não é preciso ser um grande mestre para escolher o vinho mais apropriado a um prato – servido sozinho – precedido de sopa e salada, seguido de queijo e sobremesa. Independente de grandes conhecimentos, trata-se de uma simples questão de bom senso…”. Logo depois, o tombo fica ainda maior para os cientistas e engenheiros da gastronomia definitiva “Comumente, crustáceos, peixes, vol-au-vent, quiches etc. são acompanhados de vinho branco, por esquecimento ou ignorância da principal razão desta escolha: somente o vinho branco seco pode preceder um vinho tinto sem comprometer a sua degustação!”(grifo meu)

        Ora, que beleza de ensinamento, mais do que harmonizar um prato com um vinho, o texto propõe harmonizar o vinho de agora com o vinho de daqui a pouco! Isto que é sabedoria de tirar o chapéu (se é que alguém continua usando esta peça do vestuário que algum dia cobriu as nossas ricas massas encefálicas)!. Bom senso sobre bom senso. Em dois parágrafos, dois ensinamentos que valem um livro inteiro sobre harmonização – siga o bom senso e sirva antes o vinho branco seco. Nenhuma razão é mais forte do que esta para comer entradas e pratos leves com vinhos brancos secos, por mais que estes possam ser o melhor acompanhamento líquido para os deliciosos frutos dos mares e dos rios.

      Melhor seria dizer:

  1.  recomende o óbvio quando seu conhecimento de vinho e comida for muito maior do que os que lhe pedem conselhos.
  2.  beba literalmente o que quiser quando estiver sozinho.

Beba até espumante demi-sec com feijoada, mesmo que todos os seus poros recomendem uma bela cachaça com limão espremido, seguido de um chopp em caneca de prata!

Mais um inteligente texto do amigo e colaborador, agora com participação quinzenal aos sábados, Breno Raigorodsky; 59, filósofo, publicitário, cronista, gourmet, juiz de vinho internacional e sommelier pela FISAR. Para acessar seus textos anteriores, clique em Crônicas do Breno, aqui do lado.

Reflexões do Fundo do Copo – Entre o Exótico e o Original II

           Em artigo anterior pretendi apresentar um quadro sobre as dificuldades de consolidar a produção do bom vinho tinto que se faz no Brasil de hoje. Os grandes produtores, exceção feita a poucos, ainda não planejam sua expansão como fazem as grandes indústrias, e produzem olhando principalmente para seus próprios sonhos de consumo e para a condição territorial que possuem, plantando o que dá certo, apurando o que é bom e parece poder melhorar.

            Fico aqui imaginando vinhos da qualidade indiscutível… Imaginando o inimiginável até poucos anos atrás… Do Storia Valduga, do Anima Vitis da Boscato, do grande merlot da Argenta, do Francesco da Villa Francioni e outros que vão aparecendo de modo a não mais surpreender com a qualidade. Vinhos que podem até concorrer de igual para igual com alguns dos mais emblemáticos vinhos feitos na América Latina. Ouso dizer até comparáveis a um Achával Ferrer Altamira, o único vinho latino-americano que entra na lista dos “twenty-five to try before you die” da Leslie Sbrocco e certamente comparáveis a muitos dos 9 argentinos e 14 chilenos que aparecem na generosa lista dos “1001 vinhos para beber antes de morrer do Neil Beckett” *.

           Tiveram estes sonhadores procedimento errado? De maneira alguma, é assim mesmo que o mercado do vinho cresceu no mundo, desde que Arnaud III Pontac elevou seu vinho Haut Brion à condição de grande mercadoria voltada para um mercado preciso**. É apenas insuficiente, voluntarista, pois um grande empreendimento como este exige profundos estudos de mercado, conhecimento de tendências, novos nichos, novos espaços que vão se abrindo. Procedimento típico de uma indústria que usa todas as ferramentas para definir seus passos a partir da necessidade de reproduzir o capital investido em níveis que justificam o empreendimento, diferentemente do impulso romântico que leva tantos produtores a fazer o que fazem.

          O lema é “errar menos”, o que leva em conta tudo que envolve as decisões de mercado em consideração, e não apenas o que interfere na qualidade do vinho em si, evidentemente o aspecto mais importante, mas nem por isso suficiente para garantir o sucesso do empreendimento. Refiro-me a muitas pesquisas, inclusive na área que tenho maior familiaridade, que aquela das escolhas de sedução que um produto deve fazer. Um produto novo, ao se apresentar para o consumidor, deve saber exatamente o que quer que o eventual consumidor pense dele. Deve eleger o nome e a forma de se apresentar criando naquele target group – (o jargão publicitário costuma vir em inglês) – uma série de sensações, entre elas identidade própria, credibilidade, novidade, impulso à experimentação, identificação estética, compatibilidade com o poder de aquisição. Uva malbec cria uma associação de identidade com a Argentina, lembra sabor adocicado e fácil de consumir, sugere uma paisagem andina, um bom preço. O nome Ruca Malen não lembra a Argentina, pois o consumidor não sabe que o nome é Mapucho, língua dos aborígenes dos Andes. Para cumprir este papel de associação direta, sem que se tenha de ler a longa explanação presente no contra-rótulo, era necessário que o vinho se chamasse Maradona, tango ou Carlos Gardel. O nome Ruca Malen cria, no entanto, uma identidade interessante para o futuro, não para a primeira degustação. Coisas como estas definem a fixação do nome do produto.

          Na mesma ordem, o rótulo quer passar o quê? Que o produto é parecido com um vinho francês e portanto usará aquela organização dos dizeres presente num grande vinho de Saint Emilion? Digamos que seja este o caso, ele cumprirá, ao abrir a rolha a promessa de associação? Era o que faziam nos primórdios vinhos que tinham nome afrancesado como Chateau Duvalier. A promessa visual não se cumpria e virava então motivo de piada, por ter prometido o que não podia cumprir. Os nossos Don Gaulindo, Villa Francione e todas as centenas de italianismos presentes nos vinhos do Vale dos Vinhedos são referência eventuais para o mercado interno, mas apenas confunde o público-alvo estrangeiro. Questões como esta e tantas outras deverão amadurecer nos próximos anos.

         Concedo que posso estar exigindo profissionalismo demais para um departamento da economia que tem menos de 10 anos de atividade voltada para a parte alta – digamos assim – do mercado, exceções honrosas feitas, com especial destaque para a Miolo que vem lançando produtos, diversificando áreas de produção, realizando associações entre produtores e joint ventures comerciais com opções de representação intercontinental, pensando grande desde o começo. Por enquanto, poderia continuar tecendo elogios à qualidade dos novos vinhos nacionais, como, aliás, nós, jornalistas e formadores de opinião, vimos fazendo nos últimos anos, com maior ou menor freqüência. Acontece que vinho é negócio de cachorro grande, basta pensar no relatório australiano que apresentei aqui ou então neste que a Concha Y Toro expos em seu último relatório anual.

          A Concha Y Toro fornece um quadro do desenvolvimento da indústria vinícola chilena como um todo, apesar de apresentar números precisos sobre cada um dos seus produtos, dos mais simples aos mais sofisticados, o que não é o foco desta reflexão. Num quadro que apresenta uma linha do tempo que vai de 2000 a 2008, vemos que para um crescimento da área plantada de 103.876 hectares para 117.559 (mais de 13%), produzia 650 milhões de litros em 2000 e pulou para 870 milhões (mais de 42%) em 2008. Pulou de 6257 litros por hectare para 7400, revertendo uma tendência que veio se consolidando desde os anos 80 de uma opção pela qualidade em detrimento da quantidade.

          Será que podemos concluir uma correção de rota da produção chilena em direção a produtos voltados à base da pirâmide de consumo do mercado dos países importadores? A relação não será tão direta e imediata, visto que fatores tecnológicos podem ter influenciado bastante esta maior produtividade, não apenas na vinificação, mas igualmente no plantio e nas técnicas de suporte do cultivo da uva. Ou seja, é possível pensar em maior produção sem perda de qualidade, numa plataforma agro-industrial evoluída como a chilena? O mesmo relatório mostra que não foi o mercado interno chileno que absorveu este crescimento de produção. Pelo contrário, este oscilou de 227 milhões de litros em 2000 a 235 milhões em 2008, um tímido crescimento, mesmo quando se considera que os resultados destes dois anos expostos foram dos mais fracos do período (em 2007, o mercado chegou a consumir 300 milhões). O consumo per capita no mercado interno caiu para 14 litros/ano em 2008, quando tinha iniciado a década num patamar acima, em 15, sendo que tinha atingido os 18 litros em 2007!

          Para onde foram os milhões de litros produzidos a mais? Certamente, é no volume de garrafas exportadas que se justifica a especulação sugerida acima – no período apresentado, a exportação do setor cresceu, em milhões de dólares, de 573 em 2000 para 1,4 bilhão! Passou de 266 milhões de litros exportados a 590 milhões! Associações com o Estado chileno, permitem ao produtor não apenas análises de solo, instruções enológicas, controles de qualidade, mas também simulações de mercado, recomendações no estilo de produção, produção sugerida por hectare, orientações junto ao mercado exportador etc. Isso explica em parte, o fato do Chile ocupar o segundo lugar entre os exportadores do Novo Mundo, atrás apenas da Austrália.

         Na origem está a consolidação dos ícones como Don Melchor, Clos de Apalta, Almaviva etc.; na cauda deste sucesso, vieram vinhos que competem nas prateleiras mais econômicas dos pontos de venda, enfrentando com força os velhos lideres como a Itália e outros emergentes como a África do Sul e Argentina. Atendeu igualmente a novos mercados que se formaram como os da Alemanha, EUA e mesmo Brasil, que já significa montantes importantes para o negócio chileno. É agindo como esta gigante do mundo agro-industrial, que seus vinhos foram deslocados daquele lugar na mente do consumidor onde ficam os produtos exóticos para onde ficam os produtos originais.

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* The simple&Savvy wine guide de Leslie Sbrocco – 2006 – Harper Collins  Publisher – NY – EUA e

*1001 wines you must try before you die – 2008 – Quintessence, London. Produtores latino-americanos citados – Achával Ferrer, o Alta Vista, o Alto Hormigas, o Catena Alta, o Clos de los Siete, o Terrazas/Cheval Blanc, o Noemia, o Colomé e o Yacochuya; Viña Casablanca, Errazuriz/Mondavi, concha Y Toro, Matetic, Lapostolle, Antiyal, Don Melchor, El Pincipal, Haras de Pirque, Paulo Bruno, Santa Rita, Montes.

** Arnaud III de Pontac (1599-1681). Because of him, Haut-Brion developed its reputation in England. He was the first to understand the importance of the English market, despite the wars and other problems between the two realms.

 

TOPS Argentinos – Charlando e Bebendo com os Panas.

                Vocês conhecem os Panas? Pois bem, antes que meus amigos portugueses venham a tirar conclusões precipitadas, “pana” é uma gíria venezuelana usada por amigos que se sentem mais que isso, se sentem irmãos! Foi daí que nasceu a confraria 2 panas, que já são cinco e se reúnem mensalmente para degustar grandes vinhos, com alguns dos confrades sendo participantes ativos do grupo que compõe a banca de degustadores de nossos Desafios de Vinhos. Desta vez fui convidado por dois deles, o Francisco (pana-mor) e o Evandro, com quem tive a agradável oportunidade de provar alguns dos grandes vinhos premium argentinos trazidos por este seleto grupo de panas.

              Encontramo-nos no Restaurante Pobre Juan da Vila Olimpia, restaurante que realmente é lindíssimo e cheio de charme com uma decoração muito bonita e aconchegante. Aliás, a da filial de Higienópolis também é assim. O serviço foi de primeiríssimo nível e as carnes boas com um especial destaque para a excelente morcilla, muito bem temperada e no ponto. Para quem gosta, como eu, um prato cheio!!

             Sete vinhos provados, alguns excepcionais rótulos de grande fama, mas que pecam, a meu ver, por uma certo exagero no teor alcoólico e falta de finesse, exceção feita aos três vinhos que mais me encantaram; Val de Flores, Caro e Alta Vista Alto, que conseguem mesclar potência com elegância numa riqueza de sabores que efetivamente encantam.Degustação Panas

 

  • Altocedro 2004
  • Yacochuya Malbec 2005
  • Caro 2005
  • Vistalba Corte A 2006
  • Alta Vista Alto 2004
  • Val de Flores 2004 
  • Mundvs Alto Cabernet Sauvignon 2005 * vinho surpresa 

             Não tenho tomado muitos vinhos argentinos porque tenho buscado sabores e sensações diferentes que dificilmente tenho visto na maioria dos vinhos de lá, mesmo os chamados vinhos premium ou super-premium, estando a maioria muito similares sem apresentar algo significante que os diferencie uns dos outros e sem produzir aquele UAU que esperamos de vinhos desse porte, salvo algumas exceções. Afora isso, pelo preço que estes, teoricamente, grandes vinhos estão chegando ao Brasil, temos hoje inúmeros grandes rótulos de outras origens com maior complexidade e riqueza de sabores que me têm atiçado mais a curiosidade. Por outro lado, tenho me assustado com o teor de álcool em constante elevação nesses vinhos, nesta degustação acho que o menor tinha 14%, nível que, para mim, costuma ser minha linha limitante. Tudo bem, há gente que gosta e respeito isso, mas eu não consigo encarar um Yacochuya com 16.5% de teor alcoólico fortemente sentido tanto no nariz como na boca, transpira álcool por todos os poros, mesmo com as altas notas que diversos críticos lhe deram. Acho que vinhos com essa potência perdem a função social, tanto que este não passaria no meu teste da terceira taça, mas nem a pau, aliás, nem na segunda!

               Um vinho que surpreendeu, até porque não é muito caro, é o Mundvs Alto 2005 que a casa Valduga produz em terras mendocinas e que mostrou muito boa estrutura e equilíbrio apesar de seus altos 15.5% de teor alcoólico, mas talvez o melhor custo x benefício de todos os vinhos provados tenha sido o Caro que, não por acaso, foi um dos meus preferidos e o único com “apenas” 14% de álcool. Legal a forma como o Evandro, confrade anfitrião da noite, preparou a degustação apresentando diversos cortes de carne para que sentíssemos as diversas harmonizações possíveis. Um exercício sensorial muito legal que você pode acompanhar melhor acessando o blog da confraria.

Valeu gente, uma bela experiência com vinhos que há muito queria conhecer e, muito mais que isso, o privilégio de poder desfrutar da agradável presença dos confrades.

Turma da Confraria Panas3

Salute e kanimambo

Ps. em função do Dia dos pais, adiantarei o Dicas da Semana para amanhã!

Reflexões do Fundo do Copo – Entre o Exótico e o Original

             Quantos litros de vinho e de que categoria é preciso produzir para nosso vinho tinto exportado representar algo mais do que um número à direita do zero nos gráficos dos grandes mercados compradores? Ou será que basta produzir algo de realmente novidadeiro para que faça sucesso, mesmo sem ter batido recordes de produção?

            Para responder com alguma seriedade a esta pergunta, é preciso fazer como os australianos Glyn Wittwer and Jeremy Rothfield* ao analisar as tendências do mercado internacional do vinho para 2010, num trabalho publicado na Australian Agribusiness review, volume 13 de 2005 (http://www.agrifood.info/review/2005/Wittwer_Rothfield.html), onde parâmetros de qualidade e quantidade foram definidos a partir da análise das mudanças ocorridas no mercado em 40 anos, em termos de consumo, de países fornecedores e países compradores. O que se sabe é que há 50 anos, a maior parte do vinho produzido era consumida pelos próprios países produtores. Mercados liderados pela Itália e pela França em produção e consumo lançavam nos mercados importadores produtos com destinos sócio-econômicos diferentes.

              Os franceses atendiam os consumidores ricos dos países ricos e era ícone de sofisticação, pois seus Haut-Brion, Iquem e Romanée Conti continuavam sempre valorizados – como são até hoje – enquanto que alavancavam alguns produtos não tão conhecidos, como os do Rhone, por exemplo. Os italianos, ao contrário, faziam o papel do vinho de mesa, dando continuidade gastronômica aos hábitos alimentares levados para os países de forte imigração, principalmente do Novo Mundo. Não por outras razões, os chianti de palhinha, os valpollicella, montepulciano e barberas sempre se destacavam onde houvesse grandes concentrações de famílias vindas da Itália, no Brasil, Chile, Argentina, Austrália e principalmente nos EUA. Os vinhos da Espanha e Portugal faziam o mesmo caminho da Itália, apesar de em volume menor, servindo países como o México, que jamais deixou de importar os vinhos da velha península ibérica, em medida similar à ação comercial dos brasileiros vis-a-vis da produção portuguesa.

               A análise dos australianos mostra que o crescimento do mercado internacional se deu na proporção inversa do que ocorria nos países produtores tradicionais, que caiam de um consumo de mais de 100 litros per capita de 1961 a 1964 para menos de 60 litros de 2000 a 2003. Mostra igualmente que estas informações cruzaram com a duplicação do consumo per capita em países compradores como Alemanha, Inglaterra e EUA, que saem de um consumo abaixo de 5 litros per capita em torno de 1980 e chegam ao novo milênio com um consumo acima de 20 na Alemanha dos 25 litros nos EUA. A partir daí, em uma década os novos produtores de vinho pularam de um movimento abaixo de 200US$milhões por exportador, para um patamar de 800US$milhões, tendo sempre a Austrália como líder do processo, com mais de 1,5US$bilhão para este último período, realizando mais do que o dobro do Chile, o segundo lugar.

             Mas não ficaram apenas nos números brutos e sua evolução nos anos. Analisaram 47 regiões produtoras do mundo, sendo que 38 destes se confundem com nações individualizadas de modo compartimentado nos segmentos Super Premium (acima de US$5), Premium (abaixo de US$5, acima de US$2,50) e simples (abaixo de US$2,50). Descobriram com isso, que enquanto o vinho de exportação neozelandês mostrou-se prioritariamente Premium, o sul-africano mostrou-se prioritariamente comum. No caso do Chile as proporções eram equivalentes. Desta forma, os números mostram que os destinos “EUA e Alemanha” tornaram-se orientadores de mercado, registrando as movimentações mais marcantes que se possa imaginar. A Alemanha compra atualmente vinhos espumantes do DOC Moscato D’Asti e outros espumantes, além de um volume considerável de vinhos jovens e frutados. Mas os EUA formaram um consumidor mais voltado para o chamado vinho amadeirado de degustação, com muito corpo e álcool.

              Como entrar nestes mercados? Há espaço para mais um? É preciso analisar a rota de sucesso trilhada por nossos vizinhos como o Chile, que – amparados no prestígio de marcas francesas como as do Baron de Rotschild, sócio do Concha Y Toro no inquestionável case Don Melchor – logo fez um barulho enorme junto aos formadores de opinião, o que fez com que o consumidor passasse a olhar com interesse o que vinha do Chile. É preciso saber o que estes símbolos mercadológicos que se criaram para cada país realmente significam em termos de fatia de mercado. É preciso então, não apenas avaliar os mercados que seu produto pode disputar, mas também qual é a condição mercadológica do vinho tinto brasileiro, qual é sua real especificidade, num mundo voltado ainda para as cabernet sauvignon da vida. Ou seja, lançar um produto com uvas sobejamente conhecidas deverá ter um certo impacto no impacto por conta da novidade, mas não deverá manter uma linha de crescimento se não ocupar o espaço da originalidade, da especificidade.

             O fato é que os sul-africanos são reconhecidos como produtores de qualidade com várias uvas, tendo inclusive uma que é a sua cara: a Pinotage; do mesmo modo, os argentinos com a Malbec, os chilenos com a Carmenère, os uruguaios com a Tannat, os australianos com a Shiraz e os californianos com a Zifandel. É notável que desta lista acima, apenas a Shiraz disputa espaço com o velho mundo, mesmo assim com uma mudança esperta – Shiraz no lugar da Syrah francesa – conferindo a si originalidade na carta de vinhos oferecidos ao consumidor final. As outras são produtos de menor expressão na origem européia, mesmo nos casos da Malbec e da Tannat, tradicionalmente prestigiadas apenas enquanto uvas de corte em Cahor e Madiran respectivamente.

            Nesta avaliação, cabe também ressaltar a revalorização de uma quantidade considerável de uvas autóctones que estão fazendo bonito nos mercados mundiais, como são os casos das renovadas uvas Barbera e Dolcetto do Piemonte italiano, das finas Nero D’Avola, Aglianico e Primitivo do sul da Bota, da Garnacha/Grenache espanhola/francesa, da multinomeada hispânica Tempranillo, que, juntas, ampliam o mercado produtivo europeu, intensificam o potencial de criação de divisas destes países. A França deixou de ser apenas o país de duas regiões famosas internacionalmente, mas de ao menos cinco, o Rhone norte e sul, o Loire do Chinon e o Languedoc de mouvèdre e negrette. A Itália deixou de ser apenas o Vêneto, o Piemonte e a Toscana, para ser também a Umbria, o Alto-Adige, a Puglia, a costa Amalfitana e a Sicilia. A Espanha da Rioja e do Penédes, voltou a ser Ribera Del Duero, tornou-se Priorato, Andaluzia, Catalunha. Portugal deixou de ser a terra do Porto, Madeira, Minho dos Verdes, Bairrada e Dão, para ser também Douro, Extremadura, Algarve e Alentejo.

             O assunto não se esgota aqui e no próximo artigo pretendo estender a reflexão para o que acontece neste nosso mercado interno, que cresce, cresce, cresce….., mas que praticamente ainda não conseguiu sair do lugar!

breno3Mais um inteligente texto do amigo e colaborador, agora com participação quinzenal aos sábados, Breno Raigorodsky; 59, filósofo, publicitário, cronista, gourmet, juiz de vinho internacional e sommelier pela FISAR. Para acessar seus textos anteriores, clique em Crônicas do Breno, aqui do lado, na seção – Categorias

Reflexões do Fundo do Copo – O Dilema de Nosso Novo Vinho Tinto

                Como é possível impactar com uvas internacionais e vinificações por métodos conhecidos e usados a toda hora, quando seu atrativo não está nada mais do que na origem exótica? Está em curso no Brasil de hoje, um circulo virtuoso no processo de inovação agro-industrial do vinho de qualidade internacional, que invade as fronteiras do público e do privado, dificultando definir quem inicia o processo e quem o finaliza. O estado mostra-se capaz de ajudar com ações que vão da simples divulgação de determinado produto, dentro do país, em regiões detectadas como eventuais consumidores daquele item e fora dele, no pacote comercial diplomático que costuma acompanhar iniciativas mundo afora. Para surpresa daqueles que só encontram defeito e falcatruas nos governos recentes, ele está demonstrando capacitar-se a esforços que resultam em ampliação de mercado agrícola e industrial, fomentando exportações, que resultam maior montante de divisas.

               O Estado ajuda, criando e aprofundando a qualidade da pesquisa e do controle na produção, criando mecanismos de punição fiscal e criminal para aqueles que pretendem ludibriar o consumidor com produtos que prometem e não cumprem; criando linhas de crédito, subsídios e incentivos para determinada produção. Ajuda também, reformulando os impostos sobre a produção e circulação de determinados produtos. O contexto é de forte ebulição na área da formação teórica, multiplicando-se os cursos práticos por vários centros, não apenas no Rio Grande do Sul, a partir da UCS, não apenas em São Paulo com o Senac e a Anhembi Morumbi, mas também em escolas técnicas espalhadas pelo país, como em Jundiaí e na Cândido Mendes no Rio de Janeiro.

               O intercâmbio não pára de crescer e os doutores em vinho vão se multiplicando, formados por aqui, com especialização na França, na Itália e na Argentina, como se vê nos centros de estudo em Florianópolis, onde a presença de professores vindos de Bordeaux é constante e como se percebe através das parcerias realizadas entre universidades brasileiras e centros de conhecimento e divulgação como são as italianas FISAR (Fed.Italiana Sommeliers, Albergatori, ristauratori) e AIS (Assoziazzione Italiana Somelier). 

              Mas as contradições inerentes ao prêmio por mérito em eficiência, este mesmo Brasil que continua patinando na hora de taxar quem produz em muitas áreas, inclusive nesta. Isso já foi dito de modo exaustivo, já se lutou com todas as armas, mas não custa repetir – Enquanto os vinhos finos dos países vizinhos visitam nossas gôndolas por pouco mais do que nada, os produzidos no Brasil passam pelos espinhos da dupla taxação referente a bebidas alcoólicas e a produtos de luxo. O privado, visto aqui como o poder proprietário, parece estar fazendo sua parte, aportando capital de outros departamentos da economia, como são patentes os casos famosos da Villa Francioni e da Pericó. Há uma procura importante de descentralização da produção de uvas no país, que acaba determinando a produção em terras mais apropriadas para isto, que analisam desde as características dos subsolos até o gradiente térmico e climático, seguindo recomendações de técnicos particulares e de entidades do Estado para todos os estágios da produção, driblando finalmente dificuldades enológicas que pareciam definitivas e que carimbavam o vinho brasileiro como um produto definitivamente medíocre.

               Tudo dito, os dilemas que se aplicam ao produtor brasileiro de vinho tinto estão em que tipo de vinho aplicar o capital investido, qual é o melhor plano para atingir a maturidade produtiva, como reproduzir a rota de sucesso já trilhada pelos espumantes brasileiros, identificados como produtos de alta qualidade. O vinhateiro de vinho tinto fino brasileiro tem nesta etapa de implantação, os olhos voltados para o exterior, visto que no mercado interno não se vê em condições de competir com o produto dos vizinhos; Chile, Argentina e mesmo Uruguai, na relação Qualidade X Preço, por mais que promova campanhas publicitárias e promocionais esporádicas, chamando o consumidor a uma duvidosa opção cívica a favor do produto feito por aqui.

              Parece que a dicotomia que sempre se apresenta no confronto de interesses que regem a economia do País se expressa de modo transparente na forma de implantar inovações. A gaveta dos produtos criados para exportar são tratados a pão de ló, com direito a plano de expansão, estratégias de exposição de produtos, incentivos fiscais, linhas de crédito etc. enquanto que os produtos criados para o mercado interno ficam à mercê das antigas leis do mercado, onde o mais forte – e nem sempre o melhor – é o que já está consagrado. Neste contexto, os produtos de origem brasileira parecem estar sempre fora de lugar – ou se alinham, envergonhados, nas prateleiras reservadas aos produtos de baixa qualidade ou se perfilam, como um blefe de curto fôlego, junto aos produtos mais caros, com o custo totalmente descompassado.

               Como parêntesis, pergunte a qualquer importador de vinho como se trata este mercado de consumo interno e ele responderá que traz os vinhos já consolidados acrescidos dos vinhos que caíram nas graças do consumidor brasileiro! Considerando que – apesar do enorme crescimento de oferta – não chegamos aos 3 litros de consumo anual per capita, o que é pífio em volume, falamos que existe um “paladar do consumidor brasileiro”… Ou seja, nada mais conservador, nada mais irritante para quem procura fomentar a diversidade e não reproduzir ad nauseum as mesmas condições de sempre.

               Portanto, incapaz de ver brechas reais no mercado interno e para não mexer demais na lógica já constituída, o capital recente na área tem os olhos naturalmente voltados para os mercados internacionais, não apenas por todo o incentivo que se obtém, mas também porque se trata de mercados ávidos de novidades, que dragam todo e qualquer produto desconhecido, numa ânsia pantagruélica por novidades. Evidentemente, o consumidor alemão, inglês, americano e japonês – além de outros tantos consumidores de outros tantos mercados secundários que se abrem, como os da Europa do leste e da Ásia ocidentalizada a partir da Coréia – têm referências de qualidade e preço de tantos outros pontos do mundo e já experimentaram tantas outras ondas novidadeiras bem antes desta que estamos pretendendo criar. São curiosos, recebem novos produtos de braços abertos. Mas seguem a cruel verdade, por demais conhecida de todo profissional de marketing – experimentam uma primeira vez, querem sentir o gosto daquele produto, e simplesmente, deixam de comprar a segunda vez, se não houver sedução.

              É aí, então que se descortina o último e o mais verdadeiro dos dilemas: como é possível impactar com uvas internacionais e vinificações por métodos conhecidos e usados a toda hora, quando seu atrativo não está nada mais do que na origem exótica? É um grande mérito fazer um merlot de qualidade, um cabernet sauvignon comparável a alguns dos melhores do novo mundo. Mas na hora que até os portugueses estão fazendo vinhos fantásticos com Shiraz, que os australianos não param de inovar, que os italianos despejam novidades com suas uvas do sul e também a partir de novos tratamentos com as grandes do Piemonte; no momento em que Israel e Líbano entram com as mesmas vinificações, com as mesmas uvas; que a França amplia seu parque produtivo no sul, baseando a produção em velhas conhecidas como a Grenache e a Espanha não para de produzir novidades, qual é o nicho que saberemos ocupar?

breno3Mais um inteligente texto do amigo e colaborador, agora com participação quinzenal aos sábados, Breno Raigorodsky; 59, filósofo, publicitário, cronista, gourmet, juiz de vinho internacional e sommelier pela FISAR. Para acessar seus textos anteriores, clique em Crônicas do Breno, aqui do lado, na seção – Categorias

Reflexões do Fundo do Copo – o gosto, o desgosto e o degustar.

            Quisera poder comparar vinhos com coisas diferentes, para não ter que por em xeque minhas certezas neste quesito. Quisera ser fiel ao meu gosto já determinado, para que pudesse contar com uma sólida base de certezas que me permitissem construir minha adega até o fim da minha vida. Deste ponto de vista, feliz era aquele saloio que vivia em seu canto, consumindo os produtos da região, jamais entrando em contato com o desconhecido. Urbano e mundano que sou, a informação de que existem muitos milhares de vinhos no mercado que eu não conheço me deixa extremamente desconfiado das minhas certezas.

              Quem sabe entre os desconhecidos exista o vinho do dia-a-dia definitivo. Quem sabe entre eles, exista um vinho igualzinho aquele que gostei tanto, mas muito mais barato. Quem sabe entre eles haja sabores inesquecíveis, surpreendentes, maravilhosos, que não posso me permitir morrer antes de conhecer. Vinho é tão bom quanto o prazer que ele pode me dar, simples assim. Até porque ele não é bom em si, enquanto fenômeno que reúne condições dadas e trabalho humano. Ele é bom, na medida em que atende minha expectativa de prazer. Bom porque melhor de outros similares que já tomei, bom porque tem uma boa relação entre qualidade e preço. Bom porque me deu prestígio junto aos meus amigos, já que eles gostaram muito da minha escolha. Bom porque é diferente dos que conheço.

             Mas qual é a minha verdadeira expectativa? Ser fiel aos vinhos que já gosto, defender com unhas e dentes meu conhecimento adquirido? Nietzsche nos dá uma bela pista a respeito das certezas que parecem definitivas, herdadas que são das gerações anteriores. No livro O Connaisseur Acidental de Lawrence Osborne, traduzido e publicado pela editora Instrínseca, no Rio de Janeiro, 2004, encontra-se a seguinte citação imperativa, como costumam ser os resultados das pesquisas intelectuais deste herói do pensamento ocidental – “A vida é uma Disputa entre o gosto e degustação”.

            A simples citação, mesmo que fora de qualquer contexto, põe em moto continuo o conflito entre o gosto adquirido e a compulsão por enfrentá-lo e colocá-lo em xeque. Pois aqui, o gosto é um dado comprovado por práticas que o consolidaram – Gosto da comida da minha mãe, não porque ela ponha duas folhas de louro no feijão. Gosto porque aprendi a gostar assim, através de tanto tempo de experiência, de anos a fio comendo feijão com aquele gosto. Ao me tornar cidadão do mundo, saio por aí experimentando feijões e fico furioso quando constato que há gente por aí que ousa fazer feijão diferente do da minha mãe, quando, para mim, é evidente que aquele é o melhor que o mundo pode criar!

             Já o degustar é o colocar-se numa posição de questionar o feijão da minha mãe. Experimento outros feijões porque estou aberto a outros gostos desconhecidos. Experimento para confirmar as minhas preferências, experimento porque não temo colocá-las em xeque, seja porque estou absolutamente convencido da primazia da minha escolha, seja porque estou disposto a trocá-la. Ou seja, é assim, mais para comprovar o meu gosto consolidado e menos para contestá-lo, que saio por aí abrindo garrafas de vinhos de todo tipo.

              Procuro tateando, determinando horizontes. Eu que não gosto de vinhos de sobremesa, que prefiro vinhos gastronômicos com acidez presente, não fico por ai experimentando tudo que a late harvest que me propõem… Não fico procurando vinhos cheios de taninos de madeira americana, que também não gosto muito. Enquanto tive uma dificuldade inicial de gostar de vinhos com este acento novomundista – principalmente no que tange à exigência de maciez, mesmo em vinhos de mesa – aceito com naturalidade vinhos com cheiro herbáceo, com pouca coloração, com pouca gradação alcoólica. Portanto, a procura começa por vinhos quase iguais aos que já assimilei, o que confirma, mas não radicaliza, a tensão entre o gosto e o degustar. Primeiro procuro vinhos com características extremamente próximas as que já fazem parte do meu gosto.

               Balela procurar extrema objetividade no vinho em si, pois – como acaba de nos dar a chave o filósofo bigodudo alemão, que tanto influenciou a gente como o Freud – a questão do gosto se encontra em boa parte fora da garrafa, fora do terroir, fora da cepa. A questão está mais na nossa capacidade de enfrentar o novo. Evidentemente, o vinho tem características objetivas que o definem, características de toda ordem que podem ser divididos em conjuntos como as características geológicas, como a composição do solo e seus alimentos; as geográficas, como o clima, índice pluviométrico, variação térmica e insolação; as técnicas como os princípios enológicos a que se submete, como o uso de micro-oxigenação e o carvalho americano; a princípios de mercado, como as opções de cepas compatíveis com determinado solo; e até as sociológicas como a que tradição agrícola está inserida, quem planta e consome.

               Sim, é possível estabelecer bases para este critério de valor, bases concretas, a partir de pré-definições que envolvem defeitos reconhecidos como tal, tipicidade, características organolépticas definidas e obrigatórias. Por exemplo, uma espumante feito pelo método de Champagne tem a longevidade de sua borbulha como um critério de qualidade reconhecido. Pode ter o gosto que quiser, mas ninguém lhe nega que a longevidade da borbulha é uma característica objetiva que permite uma avaliação de qualidade. Há ainda um outro fator tão objetivo quanto estes para a formação de determinado gosto: as características físicas do próprio degustador. Em teste aplicado na faculdade do vinho de Bordeaux 2, em 2006, constatou-se que num gradiente de 10 níveis, nenhum degustador profissional era capaz de reagir com a mesma intensidade à moléculas odoríficas diferente presentes no vinho. Os que se mostraram mais sensíveis a uma determinada molécula, invariavelmente eram menos sensíveis a outras. Concluiu-se então, que não há degustador capaz de treinar sua eficiência para todos os milhares de resultados possíveis que se apresenta numa taça de vinho.

              Além disso, vive, no interior de cada degustador, outras tantas características subjetivas, como as lembranças ou referências, boas ou más, associados a determinado perfume, determinada denominação de origem etc. que influenciam obrigatoriamente o veredicto do degustador, seja ele mais ou menos treinado, não importa. Tudo reunido me permito uma reflexão em direção à humildade perante o vinho: Profissionais e amadores, não há forma de imperar sobre o gosto, o desgosto e a degustação dos outros.

 

breno3Genial texto do amigo e colaborador, agora com participação quinzenal aos sábados, Breno Raigorodsky; 59, filósofo, publicitário, cronista, gourmet, juiz de vinho internacional e sommelier pela FISAR. Para acessar seus textos anteriores, clique em Crônicas do Breno, aqui do lado, na seção – Categorias

Reflexões do Fundo do Copo – Regulamentando

breno3Mais um texto do amigo e colaborador de todos os sábados, Breno Raigorodsky. Para acessar seus textos anteriores, clique em Crônicas do Breno, aqui do lado, na seção – Categorias   

      

Em pleno século XXI, quando os controles do Estado sobre o mercado foram derrotados em quase todas as frentes desde que a senhora de ferro Margareth Tatcher assumiu o título de Primeiro Ministro do governo inglês, o governo francês não pára de regular, de decretar, de estabelecer parâmetros de funcionamento. O neoliberalismo parece não atingir com força a atividade agrícola francesa, o vinho em particular, o que talvez, fora de tempo de lugar, querem os brasileiros imitar.

         Aqui aproveitamos para refletir sobre esta nova denominação, a “Fronton”, regulamentada em meados do ano de 2005, seguindo uma tradição infindável de decretos sobre a produção e negociação do vinho que vem desde a Revolução Francesa, retomada pelo período napoleônico e por todos os governos que por lá passaram. Entre as duas grandes guerras, muita coisa foi regulamentada, entre elas, uvas, vinificações, denominações, limites geográficos e, inclusive as garrafas que poderiam ser usadas para acondicionar determinados vinhos*

BOUTEILLE-1938

1.(Litro duplo; 2. Litro; 3. Meio-litro; 4. Garrafa Bordeaux; 5. Fillette d’Anjou; 6. Demi-Anjou; 7. Anjou; 8. Maconnaise; 9.Champagne; 10. Bourgogne; 11.Saint-Galmier; 12.Frasco de Chianti; 13.Garrafa flût da Alsácia)

          De fato a maioria destes formatos de vidro consagrados por decreto, tornaram-se referências de tipicidade facilmente reconhecíveis pelo consumidor. Por conta disso, é possível saber diferenciar um Bordeaux de um Borgonha, antes mesmo de identificar rótulos e era esta a intenção aparente deste decreto. Regulamentar para defender o que está consagrado, não regulamentar para defender novos produtos de mercado. É por isso que países como a Austrália pouco ou nada regulamentam, enquanto a França e a Itália não param de regulamentar!

          É bom lembrar, para que esta reflexão não seja torta no olhar e exageradamente desinformada no conteúdo, que a França é o único país moderno cuja reforma agrária – conseqüência e causa da Revolução de 1789 – se deu por todo o território e que mantém a micro-cultura familiar como modelo mais importante de produção. Pequeno produtor, combativo produtor, reunido em cooperativas que socializam os custos de maquinaria, das avaliações técnicas e dos insumos, e que defendem o seu modelo de produção, como pudemos bem ver no filme Mondovino. Produtor independente, livre de grandes compromissos com exportação, quase sempre voltado para o mercado interno, mantém um lobby constante de pressão sobre o ministério da agricultura e da pesca, assim como sobre o da economia, finanças e indústria. Eventualmente este produtor familiar tem suas fileiras engrossadas pelos grandes da agricultura e do negócio do luxo como a gigante LVMH que detém monopólios vinícolas na França e no resto do mundo. Mas o interesse regulamentador é mais dos pequenos.

          O lado bom desta pressão é manter abertas as portas do mercado para o produto que valoriza a uva e a vinificação autóctone. Sem ela, imagino que muitas cepas secundárias teriam desaparecido por conta da lógica do mercado. O lado ruim é que eventualmente impede diversificações positivas, como ficou patente na célebre disputa italiana entre o Antinori e os produtores da denominação toscana “Chianti Classico”, onde quem venceu perdeu e quem perdeu venceu! Pois Antinori não conseguiu derrubar a regulamentação e, por conta da forte presença de uvas internacionais, não pode fazer do seu Tignanello um chianti clássico, como queria, pois o seu produto colocava em risco a tipicidade do vinho do galo vermelho, um vinho onde a uva sangiovese reina. Virou IGT, denominação pobre, muito abaixo da DOC Chianti Classico, mas virou um ícone reconhecido no mundo inteiro, mais aplaudido do que qualquer vinho clássico da região.

            Aqui, no caso da “Fronton”, o lado bom se mostra, pois Fronton, de acordo com o decreto AGRP0501416D, define que só pode beneficiar-se da “Appellation d’Origine Contrôlée” o vinho produzido nas comunas em torno de Fronton, a saber Bouloc, Saint-Rustice, Vacquier, Villaudric etc. frutos de plantas plantadas, da Negrette N, com um mínimo de presença em 50% e um máximo de 70%. A complentariedade se dará de modo decrescente – até 2019 – das uvas gamay, mérille, cisaut, mauzac, que não podem, todas juntas, representar mais de 15% do todo e que terão sua importância diminuída até 5%. Finalmente, o decreto garante a presença crescente da Syrah e da Cot, até um máximo de 25%. E, talvez a razão de ser do decreto, a presença máxima dos mesmos 25% das uvas cabernet – nas vertentes sauvignon e franc – misturadas no todo! Ou seja, o vinho desta denominação Fronton sempre será o resultado da mistura de ao menos três uvas, tendo sempre a presença constante majoritária da uva Negrette. O decreto segue outros tantos, determinando como pode ser plantado, qual o número de pés que se pode plantar por hectare (4000) etc..

           O Vale do Vinhedo, tardiamente e certamente fora do lugar, cria o seu conceito de terroir, quando este não cabe mais, pois se existiu, já foi, deixou de ser. Na verdade foi, de fato, quando se dedicava prioritariamente ao plantio e colheita das uvas americanas, Isabel, Bordô e outras de enxerto próprio. Da sua produção de mais de 3 milhões de hectolitros/ano, apenas 100mil destes são vinho tinto fino. A criação destas certificações é discutível e comercialmente têm seus fortes argumentos. As cachaças de Salinas, MG, aproveitam-se melhor da fama atingida por algumas de suas marcas mais conhecidas, em particular da ex-Havana, agora Anísio Santiago. Do mesmo modo, o reconhecimento de qualidade de produtos de pequena produção dentro dos limites do Vale do Vinhedo pode estar beneficiando todos que conseguem o certificado desta limitação regional. No entanto, além de limitar experimentos saudáveis, limites comerciais parecem sempre favorecer cartéis, como mostra a tradição brasileira na área alimentícia em várias frentes, dos embutidos de carne – impedidos de vender seus produtos além de uma distância determinada – aos laticínios não pasteurizados, igualmente impedidos de circular por alegadas razões sanitárias, não comprovadas, pelo contrário, a ver o histórico de seus similares em tantos outros lugares do mundo.

           A pergunta que fica é: a quem interessa as denominações de origem controlada? Que benefícios trará ao produtor e, principalmente, ao consumidor?

Breno Raigorodsky, 59, filósofo, publicitário, cronista, gourmet, juiz de vinho internacional e sommelier pela FISAR.

*Imagem extraída do livro Larrousse Gastronomie, apresentando as garrafas autorizadas pelo governo francês, em 1938. Imagem reproduzida e enviada a mim pelo amigo Victor Nosek.

Reflexões do Fundo do Copo – Enoturismo com Sabedoria

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Mais um texto do amigo e colaborador de todos os sábados, Breno Raigorodsky. Para acessar seus textos anteriores, clique em Crônicas do Breno, aqui do lado, na seção – Categorias   

      

          Como subproduto do interesse crescente pelo vinho entre nós, o Enoturismo tornou-se um negócio aparentemente rentável, e, desde 2006, quando larguei a empresa de propaganda que possuía, tentei logo me apropriar de um quinhão deste quintal. O quinhão que participo é formado por uma parte em vinho, evidentemente, mas não se esgota por ai, como parecem se findar as maratonas desta área que vemos ofertadas desde então, com honrosas exceções… Corridas sem fim, que fazem do turista uma pessoa de bom preparo físico, visto que deve atropelar-se sem parar dos hotéis aos aeroportos, dos aeroportos até os ônibus de traslado, dos ônibus às visitações nas vinícolas, destas para a sala de degustação e lembranças. Chegam a casa cinco, oito, dez dias depois – não importa – de quatro, precisando de umas férias para descansar, inclusive do vinho.

          Apostei que tinha muita gente como eu, disposta a fazer uma viagem para regiões de produção vinícola, mas indisposta a fazer levantamento de taça desde a primeira hora do dia até a hora de dormir… Como se isso fosse um esporte muito prazeroso. Apostei que tinha gente que faz questão de aprender pelo lento processo de apreciar uma taça com calma, num ambiente pleno no sentido artístico, político e cultural. Gente que gosta de conversar, gente que tem coisa para contar, gente que tem curiosidades múltiplas. Gente que não está apenas interessado no vinho, mas que entende que ele é resultado de múltiplas determinações de toda ordem: geológica, antropológica, histórica e social. Porque é assim que se viaja no meu quinhão, viaja-se para conhecer. Vinho pode e deve ser a melhor desculpa para isso, mas quando é obsessão torna-se “enochatice” sem fim!

         Encontrei, em Santiago do Chile, um brasileiro que tinha feito em uma semana Buenos Aires, Mendoza, La Consulta, Vale do Alconchagua, Vale de Casablanca e Vale do Maipo. No meio tempo, tinha visitado 8 vinícolas em Mendoza, 12 pelos vales chilenos, incluindo aquela muito conhecida… Aquela bem grande, que tem várias linhas de vinho, desde os mais simples até os mais sofisticados… Me ajuda aí, qual é o nome mesmo? Não pude ajudar, pensei na Concha Y Toro, na Santa Helena, mas não, não era não! Pedia desculpas por não poder alongar a conversa quando lhe perguntei o que restava na memória. Preferiu não responder, seja porque estava com pressa para não perder a excursão que ia lhe dar a oportunidade de conhecer em duas horas tudo de bom em Santiago, seja porque ele já tinha conversado demais comigo, queria se livrar de mim.

        Como a indústria dos serviços costuma fazer, o turismo foi se dividindo em nichos cada vez mais definidos, mais sofisticados, alguns mais saudáveis como os passeios de bicicleta que se tornaram boas opções para quem quer ir aos locais de produção de vinho sem perder a forma; alguns mais comerciais, como o turismo voltado para as grandes feiras, que organiza a viagem do visitante para que ele possa melhor usufruir da experiência, com degustações prévias sobre o tipo de vinho que se encontrará; outros se especializaram em viagens gostosas e, talvez – por isso mesmo – muito mais gostosas. Alguns mais especiais, como a incrível viagem que programei para um salto profundo de uma semana em Bordeaux, com três verticais entre primeiros crus (Lafite, Margaux e Iquem, apesar deste último não ter formalmente esta classificação) e uma horizontal com os quatro de 1855.

         Parece lógico pensar que alguém só escolhe um passeio na classe mais assardinhada, mais apressada, mais desconfortável, porque o “preço” é o quesito que mais conta. É isso que pensam, imagino, as agências de viagem que focam na massa dos possíveis turistas. Os excluídos são aqueles que não fazem viagens vertiginosas. Pensei num termo ideal, eqüidistante dos cursos profissionais – que conferem diplomas de participação e contam no currículum vitae dos viajantes – e algo menos massificado. Logo propus uma viagem para o centro da Itália que tivesse o vinho como guia, mas que mesclasse o que os lugares têm de melhor em vinho e comida, história, arte e cultura. Poucas e boas degustações, de preferência vinculadas a refeições noturnas e, quando possível, feitas na própria produtora, deixando livre o tempo para informações de tantas outras ordens. Viagens que começassem em terra, muito antes de fazer as malas, com aquecimentos sobre os interesses de cada um, além do vinho… Com provas cegas que permitissem um maior afinamento com o que se iria conhecer in loco.

           O modelo mostrou-se elástico e se aplica para todo lugar. Pouca gente, porque 10 pessoas se locomovem muito mais rapidamente do que grupos maiores, falam mais baixo são mais participativos, podem ter seus interesses particulares mais satisfeitos. Siena pode ser o epicentro de uma viagem enológica inesquecível para o sul da Toscana, de San Gimignano a Orvieto, desconsiderando as fronteiras formais entre a Toscana e a Umbria. Uma semana de chianti clássico, supertoscanos, brunelli e rossi di montalcino, montepulciani d’Abruzzo e vinhos da região do norte da Umbria. Quatro dias num hotel de Siena, uma noite de passagem – vindo de Malpensa – nos encantos de Cinque Terre, e três noites nas colinas de Roma, para mais tranquilamente voltar por Fiumicino, o aeroporto de Roma. Assim como Siena, Salamanca pode ser o epicentro de uma viagem que navegue por Ribera Del Duero espanhol e o Douro português, passando por Rueda. Assim como Salamanca e Siena, San Sebastian entre a Espanha basca e a França basca. Assim como os epicentros citados, outros tantos em cada país, porque importa o que se espera da viagem, adapta-se o roteiro a este perfil do viajante.

           Neste espírito, sempre pensando em viagens curtas, mas não exageradamente curtas, tendo, como ideal, saídas nas sextas feiras, retorno nos domingos. Viagens para a Itália, França, Portugal, Espanha; Viagens para cada um dos vales do Chile, para Mendoza e Patagônia na Argentina, Austrália, África do Sul; viagens para a Califórnia, Washington, Oregon; viagens para Santa Catarina, Campanha Riograndense, Flores da Cunha, Garibaldi, Bento. Viagens sem fim, aos poucos, com calma, criando condições de muita conversa descontraída com os produtores, comendo sempre pelas bordas, para nunca deixar queimar a língua e perder o gosto pela coisa.

Breno Raigorodsky, 59, filósofo, publicitário, cronista, gourmet, juiz de vinho internacional e sommelier pela FISAR.