Reflexões do Fundo do Copo – Entre o Exótico e o Original II

           Em artigo anterior pretendi apresentar um quadro sobre as dificuldades de consolidar a produção do bom vinho tinto que se faz no Brasil de hoje. Os grandes produtores, exceção feita a poucos, ainda não planejam sua expansão como fazem as grandes indústrias, e produzem olhando principalmente para seus próprios sonhos de consumo e para a condição territorial que possuem, plantando o que dá certo, apurando o que é bom e parece poder melhorar.

            Fico aqui imaginando vinhos da qualidade indiscutível… Imaginando o inimiginável até poucos anos atrás… Do Storia Valduga, do Anima Vitis da Boscato, do grande merlot da Argenta, do Francesco da Villa Francioni e outros que vão aparecendo de modo a não mais surpreender com a qualidade. Vinhos que podem até concorrer de igual para igual com alguns dos mais emblemáticos vinhos feitos na América Latina. Ouso dizer até comparáveis a um Achával Ferrer Altamira, o único vinho latino-americano que entra na lista dos “twenty-five to try before you die” da Leslie Sbrocco e certamente comparáveis a muitos dos 9 argentinos e 14 chilenos que aparecem na generosa lista dos “1001 vinhos para beber antes de morrer do Neil Beckett” *.

           Tiveram estes sonhadores procedimento errado? De maneira alguma, é assim mesmo que o mercado do vinho cresceu no mundo, desde que Arnaud III Pontac elevou seu vinho Haut Brion à condição de grande mercadoria voltada para um mercado preciso**. É apenas insuficiente, voluntarista, pois um grande empreendimento como este exige profundos estudos de mercado, conhecimento de tendências, novos nichos, novos espaços que vão se abrindo. Procedimento típico de uma indústria que usa todas as ferramentas para definir seus passos a partir da necessidade de reproduzir o capital investido em níveis que justificam o empreendimento, diferentemente do impulso romântico que leva tantos produtores a fazer o que fazem.

          O lema é “errar menos”, o que leva em conta tudo que envolve as decisões de mercado em consideração, e não apenas o que interfere na qualidade do vinho em si, evidentemente o aspecto mais importante, mas nem por isso suficiente para garantir o sucesso do empreendimento. Refiro-me a muitas pesquisas, inclusive na área que tenho maior familiaridade, que aquela das escolhas de sedução que um produto deve fazer. Um produto novo, ao se apresentar para o consumidor, deve saber exatamente o que quer que o eventual consumidor pense dele. Deve eleger o nome e a forma de se apresentar criando naquele target group – (o jargão publicitário costuma vir em inglês) – uma série de sensações, entre elas identidade própria, credibilidade, novidade, impulso à experimentação, identificação estética, compatibilidade com o poder de aquisição. Uva malbec cria uma associação de identidade com a Argentina, lembra sabor adocicado e fácil de consumir, sugere uma paisagem andina, um bom preço. O nome Ruca Malen não lembra a Argentina, pois o consumidor não sabe que o nome é Mapucho, língua dos aborígenes dos Andes. Para cumprir este papel de associação direta, sem que se tenha de ler a longa explanação presente no contra-rótulo, era necessário que o vinho se chamasse Maradona, tango ou Carlos Gardel. O nome Ruca Malen cria, no entanto, uma identidade interessante para o futuro, não para a primeira degustação. Coisas como estas definem a fixação do nome do produto.

          Na mesma ordem, o rótulo quer passar o quê? Que o produto é parecido com um vinho francês e portanto usará aquela organização dos dizeres presente num grande vinho de Saint Emilion? Digamos que seja este o caso, ele cumprirá, ao abrir a rolha a promessa de associação? Era o que faziam nos primórdios vinhos que tinham nome afrancesado como Chateau Duvalier. A promessa visual não se cumpria e virava então motivo de piada, por ter prometido o que não podia cumprir. Os nossos Don Gaulindo, Villa Francione e todas as centenas de italianismos presentes nos vinhos do Vale dos Vinhedos são referência eventuais para o mercado interno, mas apenas confunde o público-alvo estrangeiro. Questões como esta e tantas outras deverão amadurecer nos próximos anos.

         Concedo que posso estar exigindo profissionalismo demais para um departamento da economia que tem menos de 10 anos de atividade voltada para a parte alta – digamos assim – do mercado, exceções honrosas feitas, com especial destaque para a Miolo que vem lançando produtos, diversificando áreas de produção, realizando associações entre produtores e joint ventures comerciais com opções de representação intercontinental, pensando grande desde o começo. Por enquanto, poderia continuar tecendo elogios à qualidade dos novos vinhos nacionais, como, aliás, nós, jornalistas e formadores de opinião, vimos fazendo nos últimos anos, com maior ou menor freqüência. Acontece que vinho é negócio de cachorro grande, basta pensar no relatório australiano que apresentei aqui ou então neste que a Concha Y Toro expos em seu último relatório anual.

          A Concha Y Toro fornece um quadro do desenvolvimento da indústria vinícola chilena como um todo, apesar de apresentar números precisos sobre cada um dos seus produtos, dos mais simples aos mais sofisticados, o que não é o foco desta reflexão. Num quadro que apresenta uma linha do tempo que vai de 2000 a 2008, vemos que para um crescimento da área plantada de 103.876 hectares para 117.559 (mais de 13%), produzia 650 milhões de litros em 2000 e pulou para 870 milhões (mais de 42%) em 2008. Pulou de 6257 litros por hectare para 7400, revertendo uma tendência que veio se consolidando desde os anos 80 de uma opção pela qualidade em detrimento da quantidade.

          Será que podemos concluir uma correção de rota da produção chilena em direção a produtos voltados à base da pirâmide de consumo do mercado dos países importadores? A relação não será tão direta e imediata, visto que fatores tecnológicos podem ter influenciado bastante esta maior produtividade, não apenas na vinificação, mas igualmente no plantio e nas técnicas de suporte do cultivo da uva. Ou seja, é possível pensar em maior produção sem perda de qualidade, numa plataforma agro-industrial evoluída como a chilena? O mesmo relatório mostra que não foi o mercado interno chileno que absorveu este crescimento de produção. Pelo contrário, este oscilou de 227 milhões de litros em 2000 a 235 milhões em 2008, um tímido crescimento, mesmo quando se considera que os resultados destes dois anos expostos foram dos mais fracos do período (em 2007, o mercado chegou a consumir 300 milhões). O consumo per capita no mercado interno caiu para 14 litros/ano em 2008, quando tinha iniciado a década num patamar acima, em 15, sendo que tinha atingido os 18 litros em 2007!

          Para onde foram os milhões de litros produzidos a mais? Certamente, é no volume de garrafas exportadas que se justifica a especulação sugerida acima – no período apresentado, a exportação do setor cresceu, em milhões de dólares, de 573 em 2000 para 1,4 bilhão! Passou de 266 milhões de litros exportados a 590 milhões! Associações com o Estado chileno, permitem ao produtor não apenas análises de solo, instruções enológicas, controles de qualidade, mas também simulações de mercado, recomendações no estilo de produção, produção sugerida por hectare, orientações junto ao mercado exportador etc. Isso explica em parte, o fato do Chile ocupar o segundo lugar entre os exportadores do Novo Mundo, atrás apenas da Austrália.

         Na origem está a consolidação dos ícones como Don Melchor, Clos de Apalta, Almaviva etc.; na cauda deste sucesso, vieram vinhos que competem nas prateleiras mais econômicas dos pontos de venda, enfrentando com força os velhos lideres como a Itália e outros emergentes como a África do Sul e Argentina. Atendeu igualmente a novos mercados que se formaram como os da Alemanha, EUA e mesmo Brasil, que já significa montantes importantes para o negócio chileno. É agindo como esta gigante do mundo agro-industrial, que seus vinhos foram deslocados daquele lugar na mente do consumidor onde ficam os produtos exóticos para onde ficam os produtos originais.

breno3Mais um inteligente texto do amigo e colaborador, agora com participação quinzenal aos sábados, Breno Raigorodsky; 59, filósofo, publicitário, cronista, gourmet, juiz de vinho internacional e sommelier pela FISAR. Para acessar seus textos anteriores, clique em Crônicas do Breno, aqui do lado, na seção –

* The simple&Savvy wine guide de Leslie Sbrocco – 2006 – Harper Collins  Publisher – NY – EUA e

*1001 wines you must try before you die – 2008 – Quintessence, London. Produtores latino-americanos citados – Achával Ferrer, o Alta Vista, o Alto Hormigas, o Catena Alta, o Clos de los Siete, o Terrazas/Cheval Blanc, o Noemia, o Colomé e o Yacochuya; Viña Casablanca, Errazuriz/Mondavi, concha Y Toro, Matetic, Lapostolle, Antiyal, Don Melchor, El Pincipal, Haras de Pirque, Paulo Bruno, Santa Rita, Montes.

** Arnaud III de Pontac (1599-1681). Because of him, Haut-Brion developed its reputation in England. He was the first to understand the importance of the English market, despite the wars and other problems between the two realms.