Amigos do Vinho

Reflexões do Fundo do Copo – Sobre Superlativos

breno3

O livro “Gosto e Poder”, traduzido pela Cia das Letras no ano passado, do mesmo militante que se escondeu atrás das lentes do filme MondoVino, o americano que cresceu em Paris, Jonathan Nossiter, me deu ensejo de classificar os vinhos em categorias de gosto:

  • O vinho que se basta X o vinho que se complementa com a comida.
  • O vinho que usa de insumos agrícolas X o vinho natural, bio dinâmico, a favor do ambiente;
  • O vinho sem personalidade X o vinho com história;
  • O vinho desconhecido X o vinho que você tem na memória;
  • O vinho de terroir X o vinho de laboratório;
  • O vinho a favor do gosto dominante X o vinho que preza a variedade;
  • O vinho que se faz para ganhar dinheiro X o vinho que é feito com arte.

         Como a vida e a realidade são muito menos maniqueístas do que se pretende, os deuses e os diabos se confundem a toda hora e a clareza do texto fica manchada, pois o divino e diabólico ocupam os postos de seus opostos e vice-versa. Jonathan tem saudades de um tempo que não voltará e há um ilimitado elitismo neste seu sentimento. Os vinhos da sua França não voltarão, mesmo que se bio-dinamise toda a produção de vinho. O Bordeaux de hoje tem mesmo o gosto do mercado, pois ele é um produto de aspiração que não pode desiludir seus fãs. Fãs que imaginam o seu gosto, sem tê-lo conhecido… Jonathan é uma criança espantada perante o mundo de hoje.

        Mas com isso não critico a vontade, o gosto e as opções do simpático e mal humorado cineasta americano. Ao contrário, tenho a maior simpatia por quase todas as suas batalhas. Apenas digo que ele não parece entender o que aconteceu no mundo do vinho, mesmo após anos de entrevistas e documentários sobre o assunto, que, aliás, muitas vezes foi fruto de rigor profissional. Ninguém usa agro-tóxico para envenenar seu próprio terreno, suas uvas, seu consumidor. Ninguém determina que sua produção será de tantos litros por hectare com o intuito de piorar a qualidade de seu produto. Estas determinações são fruto da ignorância, da negligência, da falta de respeito para com o seu próprio produto, da falta de controle e rigor das entidades de estado, da ganância dos intermediários, da falta de conhecimento e experiência dos consumidores. São eventualmente dedo de amador, o que não quer dizer obrigatoriamente, dedo de gente que quer o mal.

      Aconteceu – se possível é usar a terminologia metaforicamente – que o modo de produção do vinho mudou. De artesanal e mercantil, tornou-se industrial e pós-industrial; de intuitivo, tornou-se planejado, de espontâneo tornou-se calculado; de fruto de um conhecimento local e familiar, tornou-se resultado de conhecimento universal; de fruto do conhecimento daquele terreno, tornou-se fruto de um estudo laboratorial de todas as determinações que fazem daquela terra melhor ou pior para se plantar. Tornou-se um dos maiores e mais lucrativos agronegócios do mundo, tomou terras antes improdutivas de regiões que jamais se produziu uva e com isso trouxe salário para muito trabalhador.

         Os apaixonados pelos grandes vinhos de Bordeaux e da Borgonha, parecidos com o Jonathan e eu, cientes da dificuldade de conseguir algumas das poucas garrafas de grande qualidade e arte que se produz na região, decidiram então sair mundo afora imitando a fórmula original, conferindo muitas vezes um toque pessoal, o que é natural e humano. Os apaixonados por multiplicar o capital investido até onde der, decidiram muitas vezes trilhar o caminho da quantidade, da falsificação, da falta de alma e arte. Entre uns e outros, alguns se submeteram ás leis do mercado simplesmente. Outros criaram verdadeiras maravilhas, surpreendentes.

          A produção do vinho pode ser uma ciência, uma arte, um ganho de vida, uma paixão, uma obsessão, uma ganância. Esta é uma realidade que não se pode negar e serve como pano fundo para todas as opções que se pode fazer, desde o gosto até o poder.

Mais um texto do amigo e colaborador, agora com participação quinzenal aos sábados, Breno Raigorodsky; 59, filósofo, publicitário, cronista, gourmet, juiz de vinho internacional e sommelier pela FISAR. Para acessar seus textos anteriores, clique em Crônicas do Breno, aqui do lado.

Reflexões do Fundo do Copo – O Melhor Vinho do Mundo

Atenção, este artigo não é recomendado para pessoas que não gostam de muito nome de vinho.

 

breno3Tem um momento na vida que você quer porque quer porque quer saber a resposta da pergunta mais recorrente: Qual é o melhor vinho do mundo????

É fácil: o melhor vinho do mundo pra mostrar para os outros, é o mais caro à disposição do mercado e é também, o mais longevo – Lafite Rotschild 1787, que continua sendo vendido a caixas, pelo valor de US104260$00 a garrafa, pela Fine&Rare Wines de Londres. No seu bolso não cabe um troféu assim tão volumoso ou tão ancião? Fique então com o Romanée Conti 1945, no mercado a US33000$00 a garrafa, ambas as informações de acordo com o site http://www.wine-searcher.com/find

           Começo descartando os concorrentes no quesito “vinho para sobremesa”. Não sei não, não gosto muito não, não conheço muito não, até porque não como muita sobremesa (tento não comer…). Mas se gostasse, se soubesse, apontaria – como todo leigo medianamente informado – para um Sauternes bordolês, o Chateau d’Yquem.

          Não quero perder todo o espaço que o Falando de Vinhos me dá só para ficar falando de vinhos que não faço muita questão de conhecer em profundidade, até porque, qualquer late harvest brasileiro me satisfaz, no máximo um montbazillac comprado no Carrefour, um vinho feito a aproximadamente 60km de Sauternes, com as mesmas uvas do famoso brotirizado, mas a quilômetros de distância no preço de seu badalado vizinho. Mas bem sei que esta discussão vai longe, principalmente porque os vinhos do Porto, os Tokaï, os Vin de Paille, os Panteleria, os Riciotos vênetos, principalmente os de valpolicella, os Marsalas, os Madeiras e os vinhos de Jerez de La Frontera vão querer disputar a primazia no quesito (que aliás, invade cada vez mais entradas com patês e queijos gordurosos)!

          O melhor de todos é o vinho mais bem feito, oriundo da terra mais apta a plantar suas uvas, com a insolação mais favorável, com o gradiente térmico mais extenso, com a sazonalidade pluviométrica mais de acordo com a cartilha, com as escolhas enológicas de maior precisão e cuidado? Qual é? Alguém é definitivo?

          Pela experiência adquirida em séculos de produção, muitos produtores de regiões espalhadas pela Europa pretendem atender as especificações acima, a começar pelas mais óbvias como a Borgonha e Bordeaux, mas a continuar por Rioja, Rhone, Piemonte, Toscana, Douro, Ribera Del Duero, Vêneto etc. Já pelos conhecimentos mais modernos, caberiam nesta definição, dezenas de produtores do Novo Mundo, espalhados pela Califórnia, Austrália, Chile,  Argentina, África do Sul e tantos outros locais de produção que se empenham para produzir o que há de melhor, incluindo entre estes – por que não? – alguns terroirs brasileiros. 

         Afinando então a conversa, dentre todos estes teriam os que se utilizam das técnicas mais bem sucedidas de guarda, onde o carvalho de primeiro uso impregna os vinhos que guarda, onde a guarda se estende até quando os taninos daquela determinada uva se amansam finalmente. Finalmente, estes usariam o que há de melhor para acondicionar o líquido, em matéria de tapo, garrafa e condições ideais de guarda e de transporte. Pois sendo assim o melhor de todos não é um, mas vários como, atestam os certificadores do mundo inteiro.

          O Robert Parker, em julho de 2009, deu pontuação máxima – 100/100 – para mais de 100 vinhos, alguns dos quais em mais de uma safra. Significa que um não prevalece sobre o outro, pois pontuações iguais e máximas são absolutas. No entanto, mesmo assim, alguns são mais iguais que os outros! Tem produtor com mais de um produto, como o Domaine Romanée Conti, que entra com um seu La Tache, com o seu Montrachet, seu Richebourg e seu Romenée Conti com ao menos uma safra. E tem vinho que aparece com mais de uma safra, o que o torna superior aos outros, por mais que garrafa por garrafa eles se equivalham… Neste sentido, o campeão do Parker vai surpreender você, como surpreendeu a mim – o Côte Rotie La Moliné, que aparece com a nota máxima em oito edições, uma a mais que o Chateau Lafite, duas a mais que outro Côte Rotie, o La Landome.

         Se o melhor vinho não é fácil de descobrir por estas avaliações, o melhor negociante do mundo, ainda de acordo com o Parker, é indiscutivelmente o Guigal, que arremata – além de outro Côte Rotie citado, o La Turque com quatro safras e o Hermitage Ex Voto, igualmente com quatro indicações. Portanto, tem na sua carteira de vinhos com 100 pontos 22 rótulos, um recorde importante o suficiente para ser citado no Guiness!

         Ainda de acordo com o certificador americano, o melhor do vinho vem de Bordeaux, por contar com mais rótulos e mais safras premiadas, mas tem seus rivais muito próximos, a começar do Rhone, não somente pelos vinhos já citados, mas também por uma pá de Chateauneuf Du Pape e outros Ermitage, além de um Côte Rotie que não é vendido pelo Guigal. Mas o melhor vinho do mundo não é nenhum desses. Até porque estas pontuações não têm nada de consensuais, visto que muitos dos vinhos apontados pelo americano, não têm primazia em outros lugares e para outros certificadores. Como simples exercício, compare os melhores do Wine Spectator e do Gambero Rosso com estes daqui. Os mais premiados com a nota máxima e por mais safras dentre os italianos não aparecem no Parker, enquanto que os dois citados por ele feitos em solo italiano não tem tanto destaque, aparecem entre outros (Sassicaia e o Tua Rita, dois supertoscanos).

        Portanto, é melhor eleger o que já tomei e que faz falta, o que quero sempre repetir, o que morro de vontade de conhecer, aquele que melhor combina com as coisas que eu gosto mais, porque vinho e comida para mim são itens indivisíveis, o que coloca em xeque metade dos itens que o Parker elegeu. O melhor Barolo que lembro ter tomado não foi nenhum dos mais conhecidos, foi o Stra, já citado em outros artigos, um vinho produzido nas divisas entre Barolo e La Mora, num hectare plantado por um pai, um filho e um neto, administrado por uma nora. Um vinho de US12$00, cuja safra não rende mais do que 8 mil garrafas, vendidas integralmente a gente como eu, que passei por lá. Mas não, o melhor foi aquele Amarone que tomei em Verona, acompanhando um panino de presunto cru de Oca, ou será foi aquele Gevrey Chambertin que tomei no segundo dia de visita a Borgonha?

         Ai, caramba, nem falei nada dos brancos e dos rosados, excelentes por todos os países de tradição vitivinícola, a começar por Portugal com seus Alvarinhos, a terminar pelos Pouilly Fumé do Loire. Mas não dá pra continuar, o dono do Falando de Vinhos já falou pra encerrar. Sorry.

Mais um texto do amigo e colaborador, agora com participação quinzenal aos sábados, Breno Raigorodsky; 59, filósofo, publicitário, cronista, gourmet, juiz de vinho internacional e sommelier pela FISAR. Para acessar seus textos anteriores, clique em Crônicas do Breno, aqui do lado.

Reflexões do Fundo do Copo – Propaganda do Vinho, o Desafio da Hora.

breno3Escrevi um artigo sinuoso e pouco afirmativo em dois tempos sobre a propaganda de produtos supérfluos e ligados ao prazer para a revista “Free Time”. Reproduzo, reviso e complemento o segundo tempo dela, neste generoso espaço do “Falando de Vinhos”, por supor que são dois veículos dirigidos a públicos diferentes, por mais que haja coincidências de leitores. Aviso que é um texto que mais parece um rascunho, que provavelmente mereceria apenas a atenção dos ratos e das traças, se fosse ele de papel e não um material assim tão etéreo como o do navegador virtual que lhe carrega de passagem.

Pois bem, sem mais firulas, no primeiro tempo, depois de fazer um arrazoado mais ou menos longo sobre as dificuldades que sofre um ícone aristocrático para anunciar-se como produto de mercado, escrevi o que vem abaixo:

 A Propaganda do vinho

          Acabei o artigo anterior refletindo sobre as dificuldades que o mundo da comunicação tem para anunciar produtos que saem do nicho restrito a produtos de elegância e excelência para cair na real do consumo diário. Chamei a atenção para o vinho, por ser, no meu entender, o desafio da hora.

         O vinho é um produto fora de padrão por várias razões que merecem uma pequena história – junto com a cerveja, é fruto de fermentação conhecida há mais de cinco milênios. É produzido e consumido por diferentes culturas de diferentes origens. Está na restrita família dos produtos bíblicos que se manteve até os nossos dias. É fruto da terra e do trabalho do homem, como o azeite da oliveira, o pão do trigo e cerveja de cereais. Qualquer amassamento de uva seguido de um processo de fermentação natural ou induzido, proposital ou acidental, pode ser chamado de vinho, o que lhe dá uma grandeza desmedida – queiram ou não os seguidores de algumas seitas protestantes e fundamentalistas, que não sabem como impedir o consumo do álcool entre os seus seguidores, na medida em que ela está presente em tantas referências do Velho Testamento Biblíco. É verdade que este vinho bíblico não era um produto comum, mas “casher”, diferenciado na manipulação, na vinificação e no uso sagrado, como me explicou Anete R. Ring, importadora de vinhos e azeite de Israel no Brasil. O vinho era cozido, ganhando, aos olhos dos responsáveis pelos antigos mandamentos, sua divinificação, pois manipulado de modo a destacar-se do vinho feito acidentalmente e sem qualquer ritual… Ou seja, o vinho tribal, pagão.

          É conhecido enquanto produto por todo o mundo ocidental, sendo que boa parte desta população tem em seu DNA algum parentesco – mesmo que distante no tempo e no espaço – com algum produtor de uvas e vinho. É, portanto, um produto assimilado, fácil de determinar, com o uso bem definido?! Sim, quando se pretende apenas falar do vinho em geral. Não, quando se pretende definir um nicho e menos ainda quando se quer lançar um produto específico. Pois o vinho é um produto manhoso que se esconde sobre esta capa de simplicidade. Há circulando no Brasil, mais de 20 mil rótulos diferentes, dos quais ao menos 2/3 foram produzidos na América Latina, quase 1/3 nos países do Velho Mundo e a pequena parcela restante vieram da Austrália, Nova Zelândia, África do Sul e América do Norte, além de alguma coisa vinda do Oriente Médio. Entre estes 20 mil rótulos, se encontra produtos que custam para o consumidor final, menos de R$10,00 e há outros que custam mais de R$10.000,00, todos carregando o título de vinho, por mais que alguns deles sejam frutos de procedimentos, que não passariam (como não passam) por controle de qualidade mais rigoroso, como o da Comunidade Européia.

        Dito isso, o briefing criativo para a agência de publicidade que pretende apresentar um deles ao consumidor, começa a se fechar com informações que localizam o produto no mercado restrito dos vinhos. Cada um está numa posição diferente entre mesmos produtores. Pesquemos um exemplo concreto: o respeitado vinicultor das rendondezas de Alba no Piemonte italiano, Pio Cesare, produz Barolos e Barbarescos de grande qualidade, orgulhosos com os 42 meses que passam em madeira muito superior às exigências da legislação que controla o uso de suas denominações, ou seja, ao menos 36 meses para o primeiro e 30 meses para o segundo em madeira, além de dois anos em garrafa antes de ser comercializado. Com a uva Nebiollo, a mesma utilizada para fazer os mesmos vinhos nobres citados acima, ele faz um vinho catalogado como Langhe Nebiollo, mais despretensioso e competitivo.

         Como sua comunicação deve se comportar, desde o rótulo até o anúncio? Deve pegar carona na história e tradição da casa centenária e, com isso, eventualmente tirar a nobreza daquele ou deve – ao contrário – mostrar uma face mais moderna e mercadológica, como um agiornamento que permite o consumidor a usufruir de um Pio Cesare num almoço normal de dia de semana, coisa inviável até então, visto que o grande vinho piemontês exige ao menos uma hora e meia de respiração, o que faz com que ele seja pouco consumido por entendidos em restaurantes, sem contar, é óbvio, que seu preço, por si, inviabiliza o seu acesso aos mortais mais comuns. Poderíamos dizer então que o Pio Cesare deveria fazer então um empréstimo de prestígio dentro de sua própria casa. Deveria dizer “Langhe Nebiollo. Finalmente um Pio Cesare para o seu almoço”. Nada melhor, um produto que sai da linha da nobreza e entra com grande estilo no mundo das mercadorias pós-aristocratas. Um vinho moderno, com know-how e sisuda seriedade. Um vinho que tem linhagem, estirpe, sem ter que se cercar de artifícios visuais que criem esta imaginação.

        Evidentemente, este argumento serve a centenas de grandes vinhos modernizados. Serve mais ainda, para aqueles que precisam revitalizar a imagem por mil razões. O Chianti Classico fugiu de sua embalagem de cestinha, quando quis ampliar seu mercado para além das cantinas e das macarronadas de Domingo. Ele mesmo, aliás, criou uma restrição visualmente reconhecível como certificado de qualidade, o “Galo Nero”, prova de espaço geográfico restrito e condições de vinificação estabelecidas. Mas o produtor que não tem uma tradição própria para se apegar, uma base material conquistada e definida como ponto de partida, se vê obrigado a procurar outros valores para levar o seu público-alvo ao consumo por impulso, ou seja, a fazer com que a comunicação leve o consumidor à experimentação.

         Então, como fazer? Para quem não tem grandes tradições e já divulga sua marca há muito tempo, um novo produto deve ser tratado com a sua especificidade, atingindo camadas inferiores ou superiores do target a que ele se dirige. No caso citado acima do Pio Cesare, certamente a comunicação deveria ser mais jovial, com traços de modernidade. O caso contrário também é possível. Empresas como as brasileiras, que nasceram produzindo vinhos simples, podem aspirar legitimamente a ter um produto de classe. É o caso, só para citar o que primeiro me ocorre, da Salton, que resolveu investir nos produtos Desejo, Talento e linha Volpi para ganhar uma segunda dimensão que se sobrepôs na cabeça do consumidor, por mais que isso não seja tão fácil assim, como seu recentemente falecido presidente sabia reconhecer, com inteligência e humildade; pois para este consumidor, será sempre mais fácil assimilar um produto mais barato numa linha de produtos de uma marca Top, do que aceitar um produto mais caro numa linha de produtos com poucas pretensões. Como o produtor do produto mais popular e acessível do mercado – o Chalise – pode, ao mesmo tempo, ser o produtor do produto mais nobre – o Talento – perguntar-se-á o consumidor desconfiado… Uma solução tem sido agregar valor à marca por associação de tecnologia, arte e prestígio. Alguns gigantes da Europa e dos EUA como a Robert Mondavi e o Chateau Rotschild, saíram de seus países de origem para transformar, por exemplo, a Concha Y Toro – um conglomerado chileno que produzia apenas vinhos simples – em produtor de ícones como são Don Melchor e Almaviva, sem entrar no mérito da qualidade indiscutível destes produtos.

              Isto fica evidente quando o mercado saúda um automóvel como o Smart ou o Classe A e os reconhece como Mercedes Benz. E no sentido contrário, fica mais patente ainda, quando a VolksWagen – um carro que se notabilizou como barato, econômico, simples e durável – esporadicamente lança um Top de linha para concorrer com seus adversários alemães BMW e Audi. Por conta da sua imagem, a VW é penalizada, obrigada que é, a competir com preço abaixo dos adversários diretos e com isso, perder lucratividade, quase sempre não encontrando solução de continuidade para o projeto, até porque é sócia responsável de sua concorrente Audi.

            Um artifício de péssimo gosto, mas muito utilizado é o de usar de elementos muito similares ao dos usados pelo produto que serve de exemplo daquela faixa de consumo. Rótulos que praticamente imitam, nomes que lembram e se associam, títulos que enganam os incautos. Por aqui, ingenuamente e não por acaso, os primeiros produtores de vinho em garrafa de 750ml davam nomes franceses a seus vinhos. Era um tal de Chateau, de Condes e condados, que pareciam vinhos importados da França e não de Bento Gonçalves e arredores. Sem personalidade própria formada, usando de uvas européias de pouca qualidade, pretendiam induzir o consumidor a satisfazer-se com sua origem imaginada.

          Os australianos saltaram fora da tradição ritualística do vinho e racionalizaram sua comunicação é apresentação de maneira radical por mais que torçamos o nariz para as tampas de rosca de metal (screw cap) e rolhas sintéticas, fugindo dos preços cada vez mais exorbitantes das rolhas. Com isso, puderam atrair um público em nada ligado às tradições do vinho, pois eram estes principalmente neófitos que davam seus primeiros passos para ingressar neste novo mundo. E esta proposta invadiu os rótulos e contra-rótulos, os nomes de cada proposta de vinho, os anúncios e promoções. Hoje em dia, é fácil encontrar produtos do mundo inteiro com propostas de modernidade. Vinhos da África do Sul com rótulos que lembram bichos autóctones, rótulos de uma elegante simplicidade vindos da Itália ou da Espanha, propostas modernas que estão a milhas de distância da sisuda apresentação dos vinhos de Bordeaux.

         Para finalizar este artigo que parece não ter fim, é preciso sempre lembrar os rótulos dos Rothschild – mais uma vez citados aqui – que desde a década de 40 entregam seus rótulos anuais para um artista plástico consagrado por ano, como Picasso ou Niki de Saintfale. Será que este ineditismo tem a ver com o fato de ser este o único vinho que passo da categoria de segundo vinho para primeiro na qualificação dos Bordeaux que se mantém imutável desde 1855, sendo esta a única exceção. Parece não de todo despropositado pensar que é também esta marca pertencente a uma família que, melhor do que reis, condes e princesas, soube passar do mundo da aristocracia para o olhar concreto do capitalismo.

Mais um texto do amigo e colaborador, agora com participação quinzenal aos sábados, Breno Raigorodsky; 59, filósofo, publicitário, cronista, gourmet, juiz de vinho internacional e sommelier pela FISAR. Para acessar seus textos anteriores, clique em Crônicas do Breno, aqui do lado.

Reflexões do Fundo do Copo – Em 2010, Conheça com Moderação

breno3              Entrei no ano com pensamentos sombrios. Seis horas da manhã de primeiro de Janeiro de 2010 e acordo suado, percebendo que o mundo ficou mais apertado. Levanto da cama num pulo, como se precisasse correr para que as paredes não se fechassem sobre mim. Tive medo de um mal conhecido e identificado, chamado vulgarmente de “especialidade”. Não sei bem como e quanto lutar, nem sei bem contra o que lutar.

             Especialidade, diz o dicionário Priberam da Lingua Portuguesa, é “parte de um trabalho ou de uma profissão a que alguém se dedica exclusiva ou particularmente”. Pois não quero me dedicar exclusivamente a nada, mas, apesar disso, ando tendo crises de especialidade! Entrei de cabeça no mundo do vinho. 2009 foi um ano que fiquei o tempo todo pensando no vinho que vou tomar, no vinho que vou descobrir, no vinho que vou recomendar, naquele que devo estudar para melhor explicar numa dessas aulas por ai.

            Para isso, deixei de me enfronhar por vários caminhos do conhecimento em troca de visitas regulares pelos sites da Jancis Robinson, Wine Spectator, Gambero Rosso, Revue Du Vin, Decanter, Wine Enthusiast, e alguns outros mais esporádicos como elvino.com da Espanha, um ou outro do Chile e outro da Argentina. Deixei de lado o jornal diário e as revistas semanais, quando priorizei folhear as revistas de vinho que chegaram a mim, como as que são vendidas nas melhores revistarias, e como a italiana Il Sommelier e a lusitana Vinhos de Portugal que me trouxeram; além daquelas que são produzidas no Brasil, exclusivas de vinho ou que mantêm um caderno especial sobre vinho e harmonização. Para completar, participei de boa parte das degustações as quais sou convidado (não são tantas), passei pelos sites e blogs brasileiros que tratam de vinho, troco mensagens sobre o assunto com produtores e outros iguais a mim em detrimento de lançamentos de livros interessantes, de peças de teatro, de concertos de música clássica, de atividades familiares.

            Não sou apenas vinho, não sou e não quero ser, mas não sei se conseguirei. Clamo por ser, por continuar sendo política, culinária, cinema, esporte, pai, filho, marido, jogador de sinuca, turista, jogador de papo fora. Mesmo o vinho quando visto tão de perto, ganha uma dimensão que nem sempre é positiva como pode parecer. O vício da informação distorce o paladar, como acaba de me acontecer ao ganhar de presente de fim de ano um vinho Teroldego do Alto Adige numerado, produzido pela Cavit em Cervara, que mais me interessou as qualidades da vinificação que o sabor, pois corri para ver no site como ele era feito, quanto tempo de barrica etc. Depois pesquisei o peso da garrafa o tamanho da rolha e fui ao primeiro gole apenas depois de saber quanto custava na Itália e quanto custaria por aqui, caso fosse importado. Pareço o médico especialista que não quer saber o todo do corpo que analisa e que não se pronuncia sobre o particular antes de ter todos os exames laboratoriais em mão. Como ele, não se permite uma opinião baseada apenas nas sensações, pois as surpresas são indesejadas.

             Acho o máximo entender profundamente de algum assunto, mas ir fundo demais e manter esta profundidade acima de tudo, aliena. Não dá para deixar de ler um artigo que sai na Piaui sobre a Marina Silva, não dá para estar por fora dos acontecimentos só porque o vinho ocupou sua vida. A especialidade vicia, isola, faz com que a pessoa se sinta bem só entre seus pares no vício. Ela pode matar e não quero entrar no ano pensando em morrer desta doença.

Mais um texto do amigo e colaborador, agora com participação quinzenal aos sábados, Breno Raigorodsky; 59, filósofo, publicitário, cronista, gourmet, juiz de vinho internacional e sommelier pela FISAR. Para acessar seus textos anteriores, clique em Crônicas do Breno, aqui do lado.

Reflexões do Fundo do Copo – A terceira onda da importação do vinho, 2010!

breno3Não me peça dados precisos para o que vou dizer, pois espertamente criei este espaço para especulações, coisa que não precisa ser defendida com dados muito precisos. São reflexões feitas desde o fundo do copo, da taça, da garrafa, da adega. Mas adianto que tudo que direi me parece tão verdadeiro, tão historicamente confiável que me atrevo a dividir com vocês.

          Vieram os vinhos com as imigrações. Vieram, portanto, para atender uma demanda que passaria de pai para filho, de mãe para filha, de tio para caiçara, porque sempre, nas colônias que se formaram, desde os primórdios, teve alguém que se engraçou com uma nativa, uma escrava liberta, uma vizinha de alguma colônia das redondezas. Porque os portugueses, nossa primeira colônia, diz a lenda só veio porque pode trazer sua Pêra Manca e Vinho do Porto nos baús, seguidos, nos séculos posteriores, pelos vinhos verdes tintos e brancos, pelos Dão e Garrafeiras que freqüentaram as empoeiradas e ensolaradas prateleiras das padarias. Porque os italianos só se dispuseram a vir para cá se viesse com eles um belo estoque de Chianti de cestinha, de Valpolicella, de Corvo di Salaparuta, de Marsala. Vieram os espanhóis com as suas amostras riojianas e penedes, com seus xerez e brandis, sempre muito bem avaliados.

           Em São Paulo do Pós-Guerra, alguns restaurantes faziam as vezes de importadores diretos, mas quase sempre quem se ocupava deste negócio, eram as empresas que viviam da importação de alimentos em geral. Era vinho de gueto, de pouca variedade e quase sempre de pouca qualidade. E dificilmente um vinho saia de um gueto e ia satisfazer o outro, a não ser quando descobriam similaridade. Portugueses bebiam os da terrinha, italianos os oriundi e os espanhóis, igual. É preciso dizer que esta coisa do vinho do gueto era superado pelos vinhos franceses, champanhas, Bordeaux e Borgonhas, que transitavam por igual entre as mesas mais abastadas, desta ou daquela colônia. Eram ursos em meio a ovelhas, para usar a imagem do Anjo Exterminador do Buñuel. Estes estavam acima do bem e do mal, se bem que para os do gueto, eram sempre comparados aos grandes de cada colônia, que orgulhosa defendia seus Barolo, Veja Sicilia e Barca Velha.

          Compunham a carga, vinho junto com o queijo parmesão, com o azeite, entre as peças de bacalhau, de embutidos, dividindo espaço com os enlatados. Não havia especialidade na importação do vinho, que nos digam as Casa Prata, Chiapetta, Rei do Bacalhau, La Pastina, Gomes Carreira, Gomes Sá, Casa Ricardo, Aurora, Casa Flora e outras tantas que atendiam diretamente a demanda. Os volumes eram muito pequenos, comparado com a circulação de hoje. Para se ter uma idéia, a grande Yllera ( http://www.grupoyllera.com ), que produz mais de um milhão de garrafas por alguns de seus 30 rótulos, estava entre nós, importada diretamente pelo restaurante Don Curro, que traz apenas o suficiente para atender a demanda de seus clientes. Anos depois, restaurantes como o Massimo e o Supra, passaram seus anos de glória importando poucos vinhos de nicho, vinhos muito especiais. Mas isso já é história do segundo capítulo, não do primeiro, este que acabamos de acabar.

           Veio então o boom do vinho chique, aquele que trocou a quantidade pela qualidade e mudou o panorama do vinho no mundo. Anos 80? Anos das degustações frenéticas nos EUA, na Inglaterra, no Japão e na Alemanha. Anos que transformaram o vinho em produto de leilão. Pois até lá, o vinho mais caro tinha sido um Bordeaux, vendido a US$500,00. Depois de lá, o preço dos vinhos foram à estratosfera e todo mundo ganhou bastante com isso… Menos o coitado do consumidor. As importadoras brasileiras pularam para patamares de lucratividade muitas vezes maiores, afastando-se dos enlatados, dos secos e dos molhados. Ao mesmo tempo – mostrando que a era do consumo dos guetos tinha sido superada com o fim dos próprios guetos de colônias que mais e mais se confundiam na sociedade urbana que se formava, com a presença importante de outras vertentes culturais, como os árabes, judeus, japoneses e tantos outros cuja origem não se confundia com a produção vinícola – o brasileiro que nasceu depois dos anos 50, chegava à sua idade adulta pronto para trocar a Coca-Cola pelo atraente vinho de garrafa azul, vindo diretamente da Alemanha para a taça de quem queria um vinho descolorido e açucarado.

          De um lado o luxo, do outro a popularização do vinho (o lixo?), este produto que insiste em se chamar vinho, não importa se custa na gôndola 1 ou 1000. Foram os anos de ouro da Mistral, Expand, WorlWine, Carrefour, Pão de Açúcar. Foram os anos dos vinhos de nicho, onde os casos citados do Massimo e muito anos depois do Supra se acomodam, mas também os da Decanter, da Peninsula, da Adega Alentejana, da Hannover. São os anos da passagem das simples cantinas italianas para os restaurantes de grande serviço, com muita coisa tercerizada. Anos que elevaram à condição de profissão especializada, o servidor do vinho na taça do cliente, profissão cujo nome bizarro – sommelier (que quer dizer em francês literalmente o despenseiro, o homem que sabe o que tem na casa, o responsável pelas compras da despensa) – é vestido de estranha nobreza, que pretende justificar, em parte, os custos astronômicos dos vinhos em carta nos restaurantes. Do lado do luxo, uma quantidade absurda de vinhos que custam ao consumidor mais de R$200,00. Do lado da popularização, 15 mil rótulos vindos, na grande maioria, dos vizinhos protegidos pelas leis do Mercosul, a um preço de gôndola a partir de R$8, preço até então exclusivo aos vinhos simples de garrafão.

            Chegamos então aos dias atuais, onde a Queda Tendencial da Taxa de Lucro se faz ver com clareza. Com tanto vinho era impossível manter aquele Império sem fronteiras. Por isso a fratura exposta de tantos bem sucedidos, empresas de grande porte como a Expand, que chegou a ter em seus catálogos 4 mil rótulos de importação exclusiva. Por isso a reformulação de empresas do Top da importação, como a Mistral que, para manter a pose de fornecedora de produtos vendidos apenas nas lojas especializadas, abriu uma Vinci, que nada mais é – além dos argumentos de aparência – uma empresa que tem uma porta aberta para o canal Supermercados. Diga-se de passagem, os supermercados não ficaram a ver a banda passar. Notaram a importância do mercado que se abria e se aparelharam tecnicamente para vender vinho. Com isso, é possível ter o vinho de qualidade nos grandes canais de circulação, coisa que era inviável até poucos anos atrás.

Abre-se um novo momento. Acho que nós consumidores vamos ganhar com isso.

Mais um texto do amigo e colaborador, agora com participação quinzenal aos sábados, Breno Raigorodsky; 59, filósofo, publicitário, cronista, gourmet, juiz de vinho internacional e sommelier pela FISAR. Para acessar seus textos anteriores, clique em Crônicas do Breno, aqui do lado.

Reflexões do Fundo do Copo – O Bom de Bico Argentino

breno3Tenho escrito para uma revista italiana, a Il Sommelier, vinculada à Federação Italiana de serviços de hotelaria e restauração (FISAR) e que tem uma versão para internet pelo site www.ilsommelier.com. É uma revista mais formal e faço esforço para escrever de modo mais impessoal, o que talvez tire o texto do perfil que costumo dar às minhas crônicas neste espaço de reflexões. O último artigo que escrevi para eles foi publicado na revista que ainda está no ar e acredito ter interesse para os brasileiros assim como para os europeus, por conta, talvez, da importância que a uva ícone argentina ganhou por aqui.

             O mundo do vinho levou um “susto bom” em 2001, quando o vinho Nicolás Catena Zapata – uma assemblage Cabernet Sauvignon/Malbec – ganhou destaque ao vencer numa degustação às cegas os grandes de Bordeaux e Napa Valley. Foi o grande debut da versão argentina da uva Malbec e, para quem não sabia do trabalho que se desenvolvia em Mendonza – a principal região produtora da Argentina – e só a conhecia pelo seu rude resultado em Cahor, seu lugar de origem no sul de Bordeaux, o resultado foi visto com descrédito.

             Anos se passaram e o desempenho da Malbec argentina deixou de ser novidade para se transformar em sucesso do público e da crítica. Da parte do público, o reconhecimento se nota pelos volumes de vinhos que são vendidos mundo afora e as divisas conseguidas pela Argentina através da exportação de seus vinhos e mosto, majoritariamente com origem na Malbec. Da parte da crítica especializada, é generalizada a aprovação que recebe, chegando até a ter o destaque do ano em revistas como Decanter, que, em 2008, deu a Nicolás Catena o seu “Decanter’s Man Of The Year”, um prêmio aos vinhos da América Latina em geral e aos argentinos em particular.

            Quinto produtor de vinhos do mundo, 11º exportador, a Argentina produziu 2,2 bilhões de kg de uva no ano de 2009. Este volume transformou-se em 1,2 bilhões de litros de vinho e mais de 387 milhões de litros de mosto (dados oficiais do Instituto Nacional da Vinicultura Argentina, publicados no http://www.inv.gov.ar/noticias.php?ind=1&id_nota=88). Esta safra é significativamente menor do que a anterior, algo em torno de 30% a menos em regiões de produção importante como Mendoza, por conta de um verão muito quente. Mas se o calor diminuiu a quantidade colhida, elevou o nível de concentração de açúcar, tradicionalmente alto, chegando a 12,9º para as uvas tintas em Mendoza e a 12,7º para as de San Juan.

            Estes números do INV argentino são referentes ao conjunto das uvas produzidas, entre as tantas cepas que se deram bem em solo platino, sendo que se a Malbec e Shiraz argentinas jogam para cima esta média, as italianas Bonarda – segunda variedade mais plantada do País – jogam a média para baixo. Pois a potência tânica da Malbec é impressionante, podendo atingir gradações que na Itália costumavam freqüentar apenas os vin santi, sendo extremamente comum os Malbec ultrapassarem a faixa dos 14º de gradação alcoólica … E haja álcool! Para se ter uma idéia, o melhor exemplo neste quesito é o San Pedro de Yacochuya de Salta que na safra de 2001 se apresentou com 15,8% de álcool.

          Ou seja, a Malbec é uma das grandes novidades deste século que se inicia, como pretendeu vaticinar Robert Parker em 2004, prevendo que esta seria uma das grandes uvas do mundo até 2015, nos moldes das grandes que não se internacionalizam como a nebiollo e a sangiovese grossa, por exemplo, expressões particulares de uma determinada região do mundo e não uvas que se dão bem em qualquer solo e condições climáticas, como parecem ser as Cabernets e Chardonnays, as Syrah/Shiraz e Sauvignon Blanc, que passeiam por todos as vinhas com grande desenvoltura.

          Malbec tornou-se uma espécie de porta de entrada para o mundo do vinho, ao menos para muitos jovens urbanos no Brasil, que não tinham o hábito de beber vinho. Ela tornou-se responsável por uma espécie de “terceira onda” de consumo, que começou entre os brasileiros com os vinhos alemães de casco azul e continuou com os lambruscos italianos. Seu grande atrativo está no seu pronunciado sweet-point-attack, um sabor de fruta em compota muito fácil de gostar. Mesmo quando não muito bem elaborado e o seu lado selvagem de amargo retro-gosto se faz presente – o doce de uvas bem maduras, o álcool muitas vezes bem dominado, a madeira – muitas vezes produto de artifícios como chips de madeira depositados em grandes torres de alumínio; e vinhos mais em conta de vinícolas como o Fúria da Finca La Célia, o Santelmo e tantas outras marcas fazem o maior sucesso entre a turma dos estreantes em vinho, com pouco dinheiro e pouca idade.

         Mas nem só vinhos de pouca qualidade se faz com Malbec. No estágio intermediário, quando a madeira geralmente é de barril de segundo uso e os cuidados na vinificação são muito maiores, encontramos vinhos interessantes, como os da Susana Balbo, os da Finca La Linda, os Terrazas, os Álamos de Catena Zapata, os vinhos do Mauricio Lorca e tantos outros. E ao chegar no Top, então, não há como negar a qualidade indiscutível atingida e encanta os novos apreciadores do vinho em todos os continentes. Os Top de Mauricio Lorca, o Clos de Los Siete do famoso e polêmico Michel Roland, os Catena Zapata, os Luigi Bosca, os Familia Marguery, os Yacochuya de Salta, os Ruca Malen e tantos outros encantam até o mais cético dos degustadores como eu.

        Veremos no mercado, o que esta safra mais reduzida e mais concentrada nos trará. Para os que se interessam só pela quantidade poderá trazer decepções, mas para quem aprecia o bom vinho, ela deverá ser muito bem vinda!

Mais um texto do amigo e colaborador, agora com participação quinzenal aos sábados, Breno Raigorodsky; 59, filósofo, publicitário, cronista, gourmet, juiz de vinho internacional e sommelier pela FISAR. Para acessar seus textos anteriores, clique em Crônicas do Breno, aqui do lado.

Reflexões do Fundo do Copo – Levi Strauss

breno3O antropólogo Levis Strauss, que acaba de morrer depois de viver um século bem vivido, em “O Cru e O Cozido”, usou a teoria da música para entender e explicar como as sociedades não diferenciadas se organizam a partir de proibições diferentes das nossas e diferentes entre outras tantas, teorizando – talvez pela primeira vez – uma política de respeito às diferenças entre culturas, sem recorrer a argumentos humanistas ou religiosos. Mostrou que o que era dado como “natural”, o incesto que fundamentava toda a organização social da sociedade grega que herdamos, bem teatralizado nos casos Édipo Rei e Electra, nada mais era do que um fenômeno “social”, pois em outras sociedades foi possível observar outros incestos tabus que não aquele que nos acostumamos a considerar fundamento de nossa ética e moral.

               Criou uma comparação extremamente sofisticada e elitizada para compreender as relações de parentescos das sociedades não diferenciadas, mas, apesar de ninguém entender o caminho trilhado por ele, suas conclusões são consagradas desde quando publicadas em meados do século XX. Har.mo.ni.a, um termo que vem do latim, significa sucessão de acordes pelas leis da modulação, combinação agradável, teoria dos sons, relações entre os registros graves e agudos, me ensina o dicionário Priberam da língua portuguesa.

              Harmonia, todos sabemos, é aquilo que convive em paz, o anverso da desarmonia, que a gente sabe bem como é quando em casa ou na mesa um quer uma coisa o outro quer outra. Por isso mesmo, todo mundo sabe o que provoca música e o que fabrica ruído. Sabe mesmo ou pensa saber?

            Passei um dia inteiro da minha vida ouvindo, e ouvindo de novo, o Quinteto Para Clarineta de Johannes Brahms até começar a gostar, para depois torná-lo aos meus ouvidos, a obra musical mais rica que jamais ouvi. Pois nas primeiras três vezes, achei qualquer coisa, nada de mais, apenas uma música com um tema eventualmente criativo. Quando finalmente fui invadido pela clareza da arquitetura musical, pela simplicidade das múltiplas combinações sinfônicas criadas a partir de apenas quatro instrumentos de corda e um de sopro, fui capaz então de compreender a precisão, a complexidade, a genialidade do que foi criado… Para poder então jogar fora toda a literatura que conhecia, que posicionava Brahms como a reação ao revolucionário Wagner que vinha se impondo no mundo, naquele quarto do XIX século.

           Espere um pouco, afinal nós viemos aqui pra falar de música ou pra falar de vinho? A culpa pela digressão está no Levis Strauss, que por sinal quase nunca usava calças jeans, criada por seu homônimo (quase não usava, mas respeitava quem usava), poucos anos antes dele mesmo, nascer. 

          Citei o caso de Brahms, para poder reforçar que uma experiência sensorial não é obrigatoriamente imediata e nem se resume a uma função harmônica. Desci do avião, ouvi no taxi a Maria Alcina cantando “se eu pegar um cavaquinho …” e foi amor à primeira vista. Eu, que nunca tinha tido fascínio pela street music ouvi MC Hamer e gostei demais. Experiências sensoriais são assim, dependem dos nossos pontos de partida para serem ou não selecionadas no escaninho das boas, das más e das comuns. Algumas são capazes de passar de um lugar para outro, mas isso depende de duas coisas: que o receptor aja a favor da mudança, ou seja, esteja aberto para que isso aconteça e/ou que a experiência se repita até que se torne tão familiar a ponto de perder o tom de estranhamento que levou Caetano Veloso a dizer que São Paulo não era espelho.

          Harmonizar vinho e comida é entrar neste mundo de sutileza das sensações. E não adianta dizer que a língua dentro da boca é dividida em sal, açúcar, amargo, azedo etc., que todo mundo pode sentir as mesmas especiarias… Não vem com essa não, porque acetona não entra na mesa que eu estiver comendo, porque eu paro de comer. Cheiro de estrebaria, brincou, só falta ter algum doente da cabeça para me convencer que isso me abre o apetite, me dá vontade de beber meu vinho sossegado.

          A música é a maior expressão harmônica. Ela nos faz ver que de tanto repetir um gesto aprendemos a gostar dele, se por acaso houver qualidades para isso. Senão como explicar que alguém possa gostar de tantos gêneros musicais diferentes? Ela nos ensina também, que gostar do gênero, não significa obrigatoriamente gostar do número e do grau. Gosto de tudo que o Brahms fez como música de câmara, mas não gosto tanto do que ele mesmo criou como música sinfônica. Gostei da Maria Alcina e de seu tom de contra-alto baixo, mas de tanto ouvir passei anos sem sequer pensar em colocar sua música perto de mim.

         A comida não é um elemento passivo na harmonia com o vinho, não se trata de um casal onde uma metade é ativa e a outra passiva. Ambas pulsam, emitem sinais, plenos de significados não apenas sensoriais mas também mnemônicos, eventualmente extremamente profundos. As conclusões desta tensão entre a música e o ambiente, entre a sua perspectiva de receber o novo e o seu repertório vivido sobre este novo, influem decisivamente na sua capacidade de experimentar.

       Pense em música quando for harmonizar vinho, comida, ambiente, conversa, companhia. Pense em música que o caminho é bom.

Mais um texto do amigo e colaborador, agora com participação quinzenal aos sábados, Breno Raigorodsky; 59, filósofo, publicitário, cronista, gourmet, juiz de vinho internacional e sommelier pela FISAR. Para acessar seus textos anteriores, clique em Crônicas do Breno, aqui do lado.

Reflexões do Fundo do Copo – A Rolha.

breno3         Há alguns anos atrás, em 2006, o site do Josimar Mello, publicou um artigo meu cujo título era “Vamos abrir a rolha?”. Tratava de uma questão aflitiva para todos aqueles que gostam de vinho, que acabam por querer compartilhar com amigos suas mais recentes descobertas. Fazia uma avaliação das razões e dos erros que se comete com esta atitude. Talvez por ter lido meu artigo de então e refletido profundamente minhas dúvidas quanto à justiça de se cobrar ou não a “rolha” – uma taxa de serviço sobre vinhos que o cliente traz para ser degustado em restaurante – o grande e já tradicional Bar Balcão (São Paulo, Rua Dr. Melo Alves, 150 – Jardim Paulista)  acabou com o problema: simplesmente impede que seus clientes tragam o vinho de casa! Vinho, apenas o que tem lá para vender e não adianta argumentar com o garçom, ele gentil e educadamente não cede.

           Foi o que me aconteceu ontem mesmo e nem quis desrespeitar as ordens dos gerentes e proprietários, meus conhecidos de tantos anos, até porque mantenho relações familiares com um dos acionistas minoritários desde as primeiras horas do empreendimento tão bem sucedido. Cheguei esbaforido e atrasado, com uma mesa composta por outras cinco pessoas. Carregava debaixo do braço duas amostras que sobraram da aula que tinha acabado de dar na Casa Cor Boa Mesa sobre vinhos italianos. Uma das amostras era um excelente Barbera e a outra um grande Valpolicella di Ripasso, dois vinhos que fazia questão de dividir as sobras com os amigos. Fui impedido.

          É a primeira vez que vejo isso acontecer, apesar de ter vivido confrontos mais ou menos pesados por conta deste item, seja com gerentes, seja com donos de restaurante. Vivi um bate-boca sério com o amigo Pasquale, dono do restaurante que leva seu nome, por ter ele praticado uma irregularidade muito comum para todos os que cobram rolha sem pensar no que está fazendo: que aplicar uma sobretaxa de serviço sobre o preço cobrado da “rolha”. Ou seja, a “rolha” é um serviço em si, não pode compor o preço que se aplica sobre os 10% de serviço! Se não fui claro, exemplifico – digamos que a “rolha” cobrada seja R$25,00 e a conta do que se comeu tenha sido de R$85,00. Portanto, o justo será cobrar R$85,00 + R$8,50 + R$25,00 = R$ 118,50; e não R$85,00 + R$25,00 + R$11,00 = R$121,00. Diferença pouca nos números, mas não na honestidade dos custos, aceitando-se que a “rolha” é um custo justo de se cobrar, bem entendido.

          Está dada a queixa. Espero que blogs que defendem o consumidor como o Alhos e Passas, o Luiz Américo do Paladar, o e-bocalivre e outros bolgueiros seguidores dos princípios de Ralph Nader me copiem! Abaixo, reproduzo o artigo citado, colocando meus comentários de revisão em itálico e entre aspas apenas naquilo que pareceu datado:

VAMOS ABRIR A ROLHA?

Sub-título: A rolha cobrada por um restaurante é ou não um fato inibidor para gourmets, que escolhem uma ocasião especial para compartilhar um rótulo de sua adega?

Texto: Josimares, Lorençatos e Sauls (este, infelizmente, não está entre nós para exercer a crítica), críticos de gastronomia em geral: criem mais este tópico para avaliação. Gostaria muito de saber se determinado restaurante cobra ou não pela rolha do vinho.

 hand20with20moneyrs1        “Rolha” é nome que se dá a uma praxe duvidosa que os restaurantes praticam sob a justificativa de cobrir despesas sobre o serviço do vinho que você bebeu…. Mas não pagou. O cliente vai à mesa, entrega uma garrafa de vinho que trouxe consigo e pede para o garçom abri-la, servi-la em temperatura e copos apropriados. São despesas referentes ao custo de manutenção e reposição de copos, ao custo do treinamento do pessoal do serviço, ao uso do equipamento de refrigeração, que permite que o vinho seja servido adequadamente. Na prática, a rolha é um fator inibidor — por mais que o parágrafo acima pretenda esconder este fato e servir de explicação. Se somarmos todo o serviço do vinho, ele resultaria num valor irrisório que jamais justificaria os cerca de R$ 80 por garrafa cobrados em alguns restaurantes de São Paulo, como o Fasano e Risoteria Segatto.

          A “punição” costuma ser determinada levando-se em conta o preço dos vinhos que compõem a carta do restaurante, como confirma a chef Isabela Masano, do Amadeus. Lá, a rolha custa R$ 40 — preço do vinho mais em conta de sua carta. Com argumentos parecidos, o Fasano cobra R$ 80; o Segato, R$ 75; e casas paulistanas como o Due Cuochi e o Martin Fierro, R$ 25 (estarão estes números revisados?). Por que inibir o cliente que escolhe seuwine cork ball restaurante para comemorar uma situação especial com uma taxa evidentemente punitiva? Ida Maria, proprietária do Due Cuochi, filosofa: “Faço questão que você venha com a sua garrafa. Sabe por quê? Se eu causar dificuldades para você consumir o vinho que quer beber, simplesmente você me abandonará por um outro restaurante qualquer!”. Não, você não leu errado, no parágrafo acima, que o Due Cuochi cobra R$25 a rolha, assim como a informação do Fasano está correta. A regra é válida somente aos clientes de primeira viagem! Pois aos habitués e aos amigos, nada de lei.

         No Fasano, o amigo é muito bem servido e recebido com seu vinho, como no Due Cuochi e em qualquer outro citado neste artigo. Alguns dos entrevistados chegaram a considerar que o restaurante que não cobra rolha é decadente. Ora, o Magari e o D.O.M. acreditam ser a adega mero complemento da comida (esta afirmação se mantém?). Seus clientes vão comer o que eles prepararam, no ambiente que oferecem. O bom vinho está lá, como está o bom sal, o bom azeite, a boa iluminação. O empresário que investiu no restaurante tem todo direito de ficar nervoso quando um cliente chega com um rótulo debaixo do braço. Com os óculos do lucro ele vê uma perda irrecuperável e um hábito que pode se propagar entre os outros clientes, o que traria conseqüências desastrosas para seu negócio. Concede-se ao empresário o direito de argumentar que cobra uma “taxa de incerteza”, pois não pode garantir a qualidade do vinho que veio de um local desconhecido, sem nada saber sobre sua conservação, transporte e região, o que poderia, de fato, estragar a harmonia necessária para melhor degustar a sua arte culinária. É possível até considerar o argumento que ouvi uma vez de um dos sócios do extinto Santelmo: “Optar por trazer um vinho de casa é um desrespeito à minha adega”…

corks-greg-griffin-stock        Por outro lado, o cliente tem igual direito de ficar nervoso e redirecionar sua bússola na busca por outros grandes castelos da gastronomia em São Paulo. Assim, os empresários à beira de ataques de nervos perdem público, porque a concorrência é grande e saudável. Escolho onde vou comemorar uma data especial numa carteira de opções cada vez maior e melhor. Sou daqueles consumidores que não tinha o hábito de beber vinho em restaurante, a não ser que os preços estivessem realmente razoáveis, muito próximos do cobrado pela importadora. Os preços eram tão exorbitantes que invariavelmente acabava bebendo outra coisa. Na Europa, a diferença entre o vinho servido num restaurante em condições normais não passa de 30% do que se pagaria pela mesma garrafa numa loja especializada ou num supermercado qualquer. No Brasil, até poucos anos atrás, o baixo consumo, as más condições de guarda e a escassa oferta podiam até explicar o dobro do preço que o restaurante cobrava em relação ao que tinha sido pago. De uma parte, para amortizar o valor do vinho que tinha no estoque — e que deixou de ser consumido por falta de cliente — e, de outra, por alguma estranha ganância, pois o bebedor de vinho era visto como um consumidor sofisticado e cheio da grana, pronto para pagar o vinho que não foi consumido pelos outros clientes!

        Mas houve um aumento geométrico da oferta da bebida pelas importadoras e pelos comerciantes de vinho em geral, o que, num círculo virtuoso: aumentou o hábito de consumo, aparelhou os restaurantes para o serviço e conservação dos rótulos, diminuiu o custo do vinho estocado e o preço do vinho comprado pela concorrência entre as importadoras, aumentou a procura por vinhos de melhor qualidade etc. Alguns restaurantes costumavam respeitar o esforço e valorizar a presença daquele cliente não habitual. Abriam espaço para o vinho que se trouxe de casa, sabendo que aquela garrafa podia estar guardada há anos esperando por uma ocasião especial. No meu aniversário de 2004 levei ao La Paillote uma Taittanger Comtes de Champagne Rosé Millésimé que ganhei, e o restaurante me acolheu com total naturalidade e sem qualquer custo adicional. No aniversário de casamento de um primo meu, fomos ao Santo Colomba com garrafas de Gevrey Chambertin que nos foram servidas e saudadas pelos serviçais com grande alegria. Pois se você for como eu, deve comprar muito mais vinho do que é capaz de consumir.

         Quanto aos meus amigos, todos compram vinho, todos querem mostrar aos outros sua última “enodescoberta”, e isso se dá quase sempre em restaurantes. Ou seja, não é o vinho que trago de casa que me afasta do consumo do produto estocado na adega do restaurante. É a visão que o proprietário tem do vinho em seu negócio que me joga nos braços da concorrência. Falta fechar o artigo com alguma pedra filosofal? Acho que não, deixe-o assim, aberto como um vinho sem rolha que precisa de oxigenação para se misturar ao mundo e ganhar o seu verdadeiro lugar.

Mais um texto do amigo e colaborador, agora com participação quinzenal aos sábados, Breno Raigorodsky; 59, filósofo, publicitário, cronista, gourmet, juiz de vinho internacional e sommelier pela FISAR. Para acessar seus textos anteriores, clique em Crônicas do Breno, aqui do lado.

Reflexões do Fundo do Copo – Domestica-se Vinho Selvagem, Tannat e Outras Cepas

breno3          Ao pensar nesta rápida viagem que minha mulher e eu fizemos para Montevideo e Buenos Aires, não pude deixar de lembrar da Roberta Bündschen, que um dia entrou na minha sala com seu passo de modelo, dizendo que adorava a carmenère. A Roberta, na época uma eficiente estagiária de atendimento da agência de propaganda por onde militei uns tantos anos, tinha este apelido porque parecia estar sempre desfilando em vez de andar. Atendia um pouco de tudo, inclusive a conta da Interfood e estava se iniciando em vinhos, quando veio com essa – Adoro Carmenère!

         Espero, Roberta, que passado alguns anos você continue mantendo seus amores desde que sem fidelidade canina a eles, porque o mundo do vinho e muito mais rico do que isso, só uma uva entre tantas não dá, não precisa, não carece. Tentamos desesperadamente nos segurar na ponte criada por uma certeza interior, uma coisa que não deixa a gente cair nos vazios da diversidade sem fim que a realidade nos apresenta. E a certeza, o gosto já constituído, acaba nada mais sendo que o fator limitador de novas experiências, quem sabe tão surpreendentemente gratificantes como a que nos proporcionou aquela outra que nos serve de guia. Gratificações que ocupam lugares diferentes no cérebro da gente, diga-se, mas que podem ativar sensações de intensidade igual.Videira

        Alguém, lá pelos lados da racional Alemanha, inventou esta coisa de oferecer ao bebedor de vinho a uva responsável pelo resultado embalado dentro de uma garrafa de vinho. Por exemplo, vinhos cujo rótulo apresenta estampado “Carmenère” dá uma sensação de conhecimento maior do que, por exemplo “Chianti”, que nada quer dizer, a não ser o nome de uma denominação de origem, ou Barolo. Simplificou a escolha do consumidor com isso, mas banalizou – todos sabemos – informou por baixo, como se a uva, coitada, fosse responsável por tudo que um vinho pode dizer em termos de sensações. É que assim como a racionalidade alemã nunca foi tão racional, basta ver sua mitologia extremamente rica em mistérios, esta história de ficar informando sobre os varietais sempre escondeu realidades que ficaram muito aquém deste simples conhecimento. Pois um vinho de 3 euros produzido com as uvas Cabernet Franc e Merlot, mesmo que fruto do terroir genérico Bordeaux, não expressa tudo que estas uvas podem dar, vide um ‘Cheval Blanc” que a galope pode nos mostrar.

        O Uruguai já foi a terra daquele vinho de macho, cavalo indomável, tannat, uma uva que caracteriza um vinho perdido perto dos Pirineus do lado francês, uma certa Madiran, mais uma das quase infinitas denominações controladas que existem na França. Ela trilha um caminho ascende, como outras tantas uvas que abrem espaço na constelação internacional, cansada de guerra das cabernet sauvignon  e chardonnay da vida. Pois não é que aplicaram o mesmo sedativo a esta uva, o mesmo que deram para o malbec na Argentina, o mesmo que aplicam ao Primitivo e ao Sangiovese na Itália, o mesmo que está trazendo a Baga portuguesa para o mundo moderno?

Gimenez Mendez       O sedativo é à base de micro-oxigenação que está conquistando as Robertas Bündchen, eu e você, principalmente quando a personalidade da uva não é afogada por um excesso de madeira, que tudo pode dominar… Fui mais longe, fui atrás até do vinho vendido em caixinhas tetrapack, que é o jeito que os uruguaios tomam seu vinho de mesa. Fui a Ariano e a Gimenez Mendez ver como duas matriarcas do bem, como a Marta Mendez Parodi e Elisabeth Ariano chegam a excelência com seus vinhos super premiados, tanto quanto os da Bouza. Reencontrei o Puzle, um vinho que os ingleses estão encantados, apesar de ter em seus intestinos tantas variedades de uva que nenhum kantiano puro deveria degustar!

        Fui mais longe ainda. Peguei o Buquebus, atravessei aquele rio da Prata sem fim para me encontrar com uma uva perdida nos rincões do Piemonte da Itália e dos desertos mendozinos da Argentina, a Bonarda, que muito bem trabalhada vem dando o que falar fora de seus lugares de origem. Dá vontade de simples dizer: Roberta, adore todas as uvas ou nenhuma. Roberta, goste do que o homem tem realizado com as uvas que a terra lhe dá.

        Venho batalhando, em termos de marketing, para bater o martelo numa uva que possa ser tão importante para o Brasil como a malbec foi para a Argentina, a Tannat tem sido para o Uruguai, a Shiraz foi para a Austrália e todo o resto. Mas acho que este papo está ficando sem sentido. Os consumidores estão percebendo que este marketing está ficando superado demais, que a uva identificadora de região já não é mais a mais importante, a que melhor define aquela terra, por mais que não se faça melhor carmenère que o Chile, melhor pinotage que a África do Sul, ao menos até agora.

       O Tannat e a Bonarda estão totalmente dominadas, domadas para conquistar o mundo dos vinhos de classe, não precisam mais contentar-se com o espaço reservado aos vinhos de mesa.

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Reflexões do Fundo do Copo – O Vinho e o Crítico

   breno3 O vinho e o crítico mantêm uma relação nem sempre auspiciosa. Enquanto o crítico é um amador, ou seja, não vive do que faz, faz de conta que é crítico, porque muitas vezes acaba sendo mais um inocente útil a serviço dos interesses do produtor do vinho, que pode ser tudo, mas jamais deixa de ter interesses comerciais no seu produto. Eu te convido para os eventos que promovo e você escreve bem sobre o que faço. Este é o trato. O mais influente conhecido de nossos entendidos em vinho na imprensa, o recém falecido e bem quisto por todos Saul Galvão, falava bem do que gostava e omitia sua opinião sobre o que não lhe agradava. Coisa de gentleman, coisa de gente fina.

             Não é preciso ser muito esperto para saber que qualquer nota 90 de Robert Parker aumenta o valor de um vinho, porque acelera – e muito – o conhecimento que se tem daquele produto, pois ele há de ser experimentado numa velocidade além do que seria comum, apenas pelas mãos do investimento publicitário e promocional. O sistema de dar notas aos vinhos que eu pratico nos meus cadernos particulares, serve como exercício próprio, uma brincadeira de confrontar a minha avaliação com a dos outros. Mas mesmo que assim não fosse, não teria grandes importâncias porque afinal não piloto uma coluna de grande repercussão no mercado. Mas o que dizer da Wine Spectator, da Decanter, do Gambero Rosso, do Peñin e de tantos e tantos outros como eles que influenciam o ato de comprar?

           Gente que escreve para milhões. Um Jorge Lucki, um Jorge Carrara, ao elogiar um vinho, tem a responsabilidade direta sobre o sucesso de venda de muitas marcas. Com isso, enquanto apenas poucos veículos sustentam uma relação profissional com os produtores e importadores, as revistas e blogs sobre vinho vão aparecendo em todas as frentes possíveis e imagináveis. Colunas que reproduzem os releases das assessorias de imprensa são inúmeras, espalhados por todos os cantos, fruto – talvez – desta pobre e incipiente relação entre produto e informação. O jornalista enófilo é seduzido por todo lado: viagens de visitação, ações patrocinadas que influenciam seu discernimento, por melhor que seja. Apenas aqueles que têm condições econômicas para viajar, comprar e degustar quando quiser e nas condições que quiser pode gritar “independência ou morte” neste negócio.

           Esta relação entre produto e imprensa não é, evidentemente, coisa exclusiva do mundo do vinho. Muitos outros nichos de interesse dependem da opinião abalizada para fazer sucesso. Os produtores de filme bajulam os críticos de cinema por isso. Os donos de restaurante fazem o impossível e o possível para aliciar o crítico gastronômico. As orquestras tentam criar o canto das sereias que enebrie os críticos mais importantes. O mesmo acontece com o crítico de arte plástica, de publicidade, de design gráfico etc. A base da questão está no grau de subjetividade do objeto a ser analisado. Prefiro assim, para não cair na vala comum daqueles que acham que homem é de tal forma corruptível que sempre será tentado a agradar quem lhe afaga.

           Boto toda a minha caixa de ferramentas à disposição da minha vontade de convencer o leitor sobre o assunto que estou tratando, portanto me envolvo emocionalmente com isso. Trato de defender as minhas pequenas certezas com todas as armas que tiver. Tento racionalizar minhas opções subjetivas e com isso passar segurança, conhecimento e informação sobre elas. O receptor deste meu esforço de comunicação é o leitor que pega o que escrevo, identifica-se com a idéia geral, com os princípios que defendo e, quase que por osmose sai a defender meu ponto de vista como se fosse seu. E assim como sou influenciado pelos que sabem mais do que eu e seduzido pelos proprietários do negócio que escolhi para comentar, influencio os que me lêem.

          Esta é a minha força. Esta é a minha fraqueza.

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