Reflexões do Fundo do Copo – Levi Strauss

breno3O antropólogo Levis Strauss, que acaba de morrer depois de viver um século bem vivido, em “O Cru e O Cozido”, usou a teoria da música para entender e explicar como as sociedades não diferenciadas se organizam a partir de proibições diferentes das nossas e diferentes entre outras tantas, teorizando – talvez pela primeira vez – uma política de respeito às diferenças entre culturas, sem recorrer a argumentos humanistas ou religiosos. Mostrou que o que era dado como “natural”, o incesto que fundamentava toda a organização social da sociedade grega que herdamos, bem teatralizado nos casos Édipo Rei e Electra, nada mais era do que um fenômeno “social”, pois em outras sociedades foi possível observar outros incestos tabus que não aquele que nos acostumamos a considerar fundamento de nossa ética e moral.

               Criou uma comparação extremamente sofisticada e elitizada para compreender as relações de parentescos das sociedades não diferenciadas, mas, apesar de ninguém entender o caminho trilhado por ele, suas conclusões são consagradas desde quando publicadas em meados do século XX. Har.mo.ni.a, um termo que vem do latim, significa sucessão de acordes pelas leis da modulação, combinação agradável, teoria dos sons, relações entre os registros graves e agudos, me ensina o dicionário Priberam da língua portuguesa.

              Harmonia, todos sabemos, é aquilo que convive em paz, o anverso da desarmonia, que a gente sabe bem como é quando em casa ou na mesa um quer uma coisa o outro quer outra. Por isso mesmo, todo mundo sabe o que provoca música e o que fabrica ruído. Sabe mesmo ou pensa saber?

            Passei um dia inteiro da minha vida ouvindo, e ouvindo de novo, o Quinteto Para Clarineta de Johannes Brahms até começar a gostar, para depois torná-lo aos meus ouvidos, a obra musical mais rica que jamais ouvi. Pois nas primeiras três vezes, achei qualquer coisa, nada de mais, apenas uma música com um tema eventualmente criativo. Quando finalmente fui invadido pela clareza da arquitetura musical, pela simplicidade das múltiplas combinações sinfônicas criadas a partir de apenas quatro instrumentos de corda e um de sopro, fui capaz então de compreender a precisão, a complexidade, a genialidade do que foi criado… Para poder então jogar fora toda a literatura que conhecia, que posicionava Brahms como a reação ao revolucionário Wagner que vinha se impondo no mundo, naquele quarto do XIX século.

           Espere um pouco, afinal nós viemos aqui pra falar de música ou pra falar de vinho? A culpa pela digressão está no Levis Strauss, que por sinal quase nunca usava calças jeans, criada por seu homônimo (quase não usava, mas respeitava quem usava), poucos anos antes dele mesmo, nascer. 

          Citei o caso de Brahms, para poder reforçar que uma experiência sensorial não é obrigatoriamente imediata e nem se resume a uma função harmônica. Desci do avião, ouvi no taxi a Maria Alcina cantando “se eu pegar um cavaquinho …” e foi amor à primeira vista. Eu, que nunca tinha tido fascínio pela street music ouvi MC Hamer e gostei demais. Experiências sensoriais são assim, dependem dos nossos pontos de partida para serem ou não selecionadas no escaninho das boas, das más e das comuns. Algumas são capazes de passar de um lugar para outro, mas isso depende de duas coisas: que o receptor aja a favor da mudança, ou seja, esteja aberto para que isso aconteça e/ou que a experiência se repita até que se torne tão familiar a ponto de perder o tom de estranhamento que levou Caetano Veloso a dizer que São Paulo não era espelho.

          Harmonizar vinho e comida é entrar neste mundo de sutileza das sensações. E não adianta dizer que a língua dentro da boca é dividida em sal, açúcar, amargo, azedo etc., que todo mundo pode sentir as mesmas especiarias… Não vem com essa não, porque acetona não entra na mesa que eu estiver comendo, porque eu paro de comer. Cheiro de estrebaria, brincou, só falta ter algum doente da cabeça para me convencer que isso me abre o apetite, me dá vontade de beber meu vinho sossegado.

          A música é a maior expressão harmônica. Ela nos faz ver que de tanto repetir um gesto aprendemos a gostar dele, se por acaso houver qualidades para isso. Senão como explicar que alguém possa gostar de tantos gêneros musicais diferentes? Ela nos ensina também, que gostar do gênero, não significa obrigatoriamente gostar do número e do grau. Gosto de tudo que o Brahms fez como música de câmara, mas não gosto tanto do que ele mesmo criou como música sinfônica. Gostei da Maria Alcina e de seu tom de contra-alto baixo, mas de tanto ouvir passei anos sem sequer pensar em colocar sua música perto de mim.

         A comida não é um elemento passivo na harmonia com o vinho, não se trata de um casal onde uma metade é ativa e a outra passiva. Ambas pulsam, emitem sinais, plenos de significados não apenas sensoriais mas também mnemônicos, eventualmente extremamente profundos. As conclusões desta tensão entre a música e o ambiente, entre a sua perspectiva de receber o novo e o seu repertório vivido sobre este novo, influem decisivamente na sua capacidade de experimentar.

       Pense em música quando for harmonizar vinho, comida, ambiente, conversa, companhia. Pense em música que o caminho é bom.

Mais um texto do amigo e colaborador, agora com participação quinzenal aos sábados, Breno Raigorodsky; 59, filósofo, publicitário, cronista, gourmet, juiz de vinho internacional e sommelier pela FISAR. Para acessar seus textos anteriores, clique em Crônicas do Breno, aqui do lado.