Reflexões do Fundo do Copo – Sobre Superlativos

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O livro “Gosto e Poder”, traduzido pela Cia das Letras no ano passado, do mesmo militante que se escondeu atrás das lentes do filme MondoVino, o americano que cresceu em Paris, Jonathan Nossiter, me deu ensejo de classificar os vinhos em categorias de gosto:

  • O vinho que se basta X o vinho que se complementa com a comida.
  • O vinho que usa de insumos agrícolas X o vinho natural, bio dinâmico, a favor do ambiente;
  • O vinho sem personalidade X o vinho com história;
  • O vinho desconhecido X o vinho que você tem na memória;
  • O vinho de terroir X o vinho de laboratório;
  • O vinho a favor do gosto dominante X o vinho que preza a variedade;
  • O vinho que se faz para ganhar dinheiro X o vinho que é feito com arte.

         Como a vida e a realidade são muito menos maniqueístas do que se pretende, os deuses e os diabos se confundem a toda hora e a clareza do texto fica manchada, pois o divino e diabólico ocupam os postos de seus opostos e vice-versa. Jonathan tem saudades de um tempo que não voltará e há um ilimitado elitismo neste seu sentimento. Os vinhos da sua França não voltarão, mesmo que se bio-dinamise toda a produção de vinho. O Bordeaux de hoje tem mesmo o gosto do mercado, pois ele é um produto de aspiração que não pode desiludir seus fãs. Fãs que imaginam o seu gosto, sem tê-lo conhecido… Jonathan é uma criança espantada perante o mundo de hoje.

        Mas com isso não critico a vontade, o gosto e as opções do simpático e mal humorado cineasta americano. Ao contrário, tenho a maior simpatia por quase todas as suas batalhas. Apenas digo que ele não parece entender o que aconteceu no mundo do vinho, mesmo após anos de entrevistas e documentários sobre o assunto, que, aliás, muitas vezes foi fruto de rigor profissional. Ninguém usa agro-tóxico para envenenar seu próprio terreno, suas uvas, seu consumidor. Ninguém determina que sua produção será de tantos litros por hectare com o intuito de piorar a qualidade de seu produto. Estas determinações são fruto da ignorância, da negligência, da falta de respeito para com o seu próprio produto, da falta de controle e rigor das entidades de estado, da ganância dos intermediários, da falta de conhecimento e experiência dos consumidores. São eventualmente dedo de amador, o que não quer dizer obrigatoriamente, dedo de gente que quer o mal.

      Aconteceu – se possível é usar a terminologia metaforicamente – que o modo de produção do vinho mudou. De artesanal e mercantil, tornou-se industrial e pós-industrial; de intuitivo, tornou-se planejado, de espontâneo tornou-se calculado; de fruto de um conhecimento local e familiar, tornou-se resultado de conhecimento universal; de fruto do conhecimento daquele terreno, tornou-se fruto de um estudo laboratorial de todas as determinações que fazem daquela terra melhor ou pior para se plantar. Tornou-se um dos maiores e mais lucrativos agronegócios do mundo, tomou terras antes improdutivas de regiões que jamais se produziu uva e com isso trouxe salário para muito trabalhador.

         Os apaixonados pelos grandes vinhos de Bordeaux e da Borgonha, parecidos com o Jonathan e eu, cientes da dificuldade de conseguir algumas das poucas garrafas de grande qualidade e arte que se produz na região, decidiram então sair mundo afora imitando a fórmula original, conferindo muitas vezes um toque pessoal, o que é natural e humano. Os apaixonados por multiplicar o capital investido até onde der, decidiram muitas vezes trilhar o caminho da quantidade, da falsificação, da falta de alma e arte. Entre uns e outros, alguns se submeteram ás leis do mercado simplesmente. Outros criaram verdadeiras maravilhas, surpreendentes.

          A produção do vinho pode ser uma ciência, uma arte, um ganho de vida, uma paixão, uma obsessão, uma ganância. Esta é uma realidade que não se pode negar e serve como pano fundo para todas as opções que se pode fazer, desde o gosto até o poder.

Mais um texto do amigo e colaborador, agora com participação quinzenal aos sábados, Breno Raigorodsky; 59, filósofo, publicitário, cronista, gourmet, juiz de vinho internacional e sommelier pela FISAR. Para acessar seus textos anteriores, clique em Crônicas do Breno, aqui do lado.