Reflexões do Fundo do Copo – Comentando um Decágolo

breno3       Mais um texto do amigo e colaborador de todos os sábados, Breno Raigorodsky. Para acessar seus textos anteriores, clique em Crônicas do Breno, aqui do lado, na seção – Categorias

 

               O cara não é o Lula, é o Carlos Alberto Doria um sociólogo multifacetado, um estudioso que não deixa o Darwin cair, só porque está escrevendo sobre a história da comida regional brasileira ou porque está fazendo um livro de reflexões sobre o cozinhar com oDecálogo Alex Atala. Ele acaba de publicar em seu blog uma norma para se beber vinho que não deixa de ter sua graça e propriedade. Digo ter sua graça porque como qualquer regra ditada, ela tem um tom imperativo que catalisa a informação em direção ao vazio e à incorreção. Digo ter sua graça porque o autor tem consciência das limitações de seu esforço normativo e por isso, tenho certeza, não pretende ser levado tão a sério assim.

São dez regras, dez conselhos, mas dos dez pego os primeiros cinco para comentar. 

Decálogo para o novo bebedor de vinhos

 1        – Saiba que a única fonte segura de conhecimento enológico é a comparação. Beber comparando é a única regra. Quem mais compara, mais conhece. E esse comparar é situar o próprio gosto no universo quase ilimitado dos vinhos.

Comentário – A uva vitivinícola ganhou, nestes últimos 3 mil anos, milhares de ramificações. Foi plantada, dizimada e replantada muitas vezes, não apenas por conta das pragas da vida, mas também por preferências dos proprietários e enólogos de plantão. Toda a região do Piemonte, por exemplo, planta uva nobre por conta de uma decisão de enólogo que elegeu a nebiolo como a uva com melhor potencial para a região, entre os séculos XVII e XIX. A Negrette, uva típica do sul da França é restrita a esta região e nunca saiu de lá, apesar de ter sido trazida do Oriente em uma das primeiras cruzadas. Porque uva é diversidade, vinificação é também diversidade. Evidentemente, no entanto, sabe-se que quase não há o que comparar entre um Chateaux de Iquem e um tinto Medoc, a não ser o fato de serem ambos produtos líquidos da uva colhida e fermentada.

2        – O ponto de partida para a comparação é qualquer um: um Miolo pode levar, por comparação, a um Haut-Brion. Ao avançar, não chore pelos que ficaram para trás.

Comentário – Considerado a minha reflexão acima, a comparação pode ser feita sempre, lembrando que dificilmente o degustador conseguirá desvincular suas sensações memoráveis na hora da comparação. Se uma garrafa de Miolo serviu como ferramenta para a mais importante conquista amorosa do degustador, ele sempre associará grande valor a este vinho, a ponto de eventualmente ser melhor avaliado que o Haut Brion degustado numa sala inócua e fortuita de uma loja de vinhos. A austeridade do conselho procede, no entanto, como provam  degustações feitas em blind test, onde degustadores menos experientes comumente confundem vinhos tintos e brancos, jogando por terra muitos dos preconceitos mais marcantes do mercado.  

3        – Diga não aos modismos. Eles em geral expressam estratégias de marketing de vinhos, regiões vinícolas. Exemplo: Beaujolais Nouveau. (Marketing, 10; vinho, 2,5!).

Comentário – Fatores do marketing podem escamotear um produto como no caso citado. Mas a atitude apressada de desdenhar qualquer envolvimento com um produto bem trabalhado pelas ferramentas do marketing não. O repúdio automático ao Beaujolais Noveau respingou nos outros beaujolais de modo extremamente cruel, a ponto de criar rejeição em enófilos mais experientes, que – já vi e comprovei – sequer querem conhecer vinhos excelentes feitos com a uva gamay, responsável pelos Noveau citado.

               Nada como isolar o vinho de todos os outros elementos, mas, verdade seja dita, um rótulo bem desenhado, que reflita perfeitamente o que o produtor e o enólogo esperavam dele, influenciam direta e positivamente a atitude do consumidor perante o vinho, o que é muito diferente do rótulo que pretende dourar a pílula, pretender algo de mais importante do que é. Num supermercado brasileiro, debatem-se nas gôndolas mais de 15 mil vinhos. Certamente, fatores visuais, referências felizes, contrastes de cores, ambientações, nomes e outros itens interferem diretamente na escolha, por menos que se queira. Igualmente, não há como esquecer o ganho emocional que se tem com algum “achado” desconhecido pelos outros entendidos…

4        – Não seja bobo. Livre-se da lábia dos vendedores sabendo que um vinho de US$ 1.000 não dá 10 vezes mais prazer do que um vinho de US$ 100. Prazer e preço não estão em relação direta.

Comentário – Sábias palavras, porque o preço não tem obrigatoriamente uma relação direta com o seu paladar. Pode ser que você goste apenas de vinhos sem madeira, jovens e frutados, cuja vinificação não exige tantos cuidados. Pois o preço do vinho tem a ver com a “lábia dos vendedores”, mas tem muito mais a ver com o custo de produção. Uma rolha pode custar de R$0,50 a R$8,00. Um vinho pode descansar e amadurecer num tonel de carvalho francês de primeiro uso que custa dez vezes mais do que um outro que já foi usado para mais de cinco colheitas. Um vinho pode ser fruto de uma colheita manual que permite menos de um litro por pé da planta, enquanto que outro pode ter sido colhido mecanicamente com uma produção de até 4 litros por planta. Uma garrafa de 750ml pode pesar em vidro mais de 1,5kg e custar muito mais do que o próprio vinho que contém.             

                 Nada disso impede, no entanto, que você goste mais do vinho barato do que do mais elaborado. Há duas Expovinis atrás, entrevistei Pio Boffa, presidente da Pio Cesari, uma das mais tradicionais produtoras de vinho com a uva nebiolo que disse algo como “meu vinho não é para o paladar daqueles que migraram recentemente do suco de laranja e da Coca Cola para o vinho. A eles vinhos docinhos na boca. Para gostar de um Barbaresco feito por mim, é preciso mais experiência, é preciso ganhar refinamento”.

5        – Liberte-se de preconceitos, não se guie por idéias prontas: o “vinho da serra é excelente” ou “o Brasil já está fazendo vinho bom”, ou “vinho europeu já era”, ou “o melhor shiraz é o sul-africano”, etc…

Comentário – O preconceito é grande demais para se saber de que lado ele está. Sou dos que afirmam que se faz bons vinhos no Brasil de hoje, apesar de achar como muitos que – por diversos motivos – ele ainda é caro demais, na maioria das vezes. Os vinhos de um modo geral ganharam um importância no mundo da agro-indústria, uma grandeza inimaginável para os produtores das décadas anteriores a 1960. Voltavam-se para o mercado interno, a não ser exceções de qualidade, como os vinhos de colecionador franceses e italianos sobretudo; e exceções de quantidade, como os vinhos italianos que guarneciam as suas colônias no Novo Mundo, que consumiram por décadas seus chianti de palhinha, seus Valpoliccella de pouca qualidade etc.

                 Tornaram-se produtos de alto valor agregado, alternativas rentáveis a muitos outros produtos agrícolas e com isso atraíram capital de outras atividades, inclusive externos ao próprio setor. Produtores de tecido, de cerâmica, idustrias farmacêuticas, astros do cinema, craques do golfe e do automobilismo e outros tantos, investiram seu rico dinheirinho em vinho.

Breno Raigorodsky; filósofo, publicitário, sommelier e juiz de vinho internacional FISAR