Reflexões do Fundo do Copo – A hierarquia do gosto e suas aberrações

breno3            Confesso que, por um ano, quando cursava o ginásio, gostava de misturar Crush com molho de mostarda. Confesso também; que uma das minhas cunhadas gosta de comer primeiro a sobremesa doce antes da comida salgada, que uma das minhas outras cunhadas só bebe vinho de sobremesa, mesmo que o prato servido seja uma salada, que tenho amigos que cortam o macarrão e outros que gostam tanto de Lambrusco amabile que estão pensando em não mais renovar o estoque de vinhos alemães de garrafa azul. Confesso que conheço e me relaciono com gente que é a favor da pena de morte, que pensaram em participar da campanha do Pitta, que votaram no Kassab, que acham que malbec é a melhor uva do mundo. A gente amolece com o tempo, até porque relativiza as certezas absolutas, até porque sabe então que não tem o dom de convencimento que achava poder ter sobre o gosto dos outros.

         De repente, o Lambrusco amabile é um avanço no gosto daquele amigo que só tomava Coca-cola. De repente o cara que votaria na pena de morte, nada mais é do que um iletrado indignado com a impunidade de um estado que não sabe exercer com competência o seu monopólio da repressão. De repente, o Pitta não é tão diferente, nem propõe coisas tão diferentes dos ex-vestais de plantão no poder central. Aprende-se a relativizar e conviver.

         O que faz hierarquizarmos o gosto, determinando que este gosto vale mais que aquele? Uma resposta boa seria que, em se tratando de alimentos, há aqueles que fazem mais pela saúde do que outros. Há mesmo até aquele que fazem mal… Se soubéssemos realmente quais fazem bem e quais fazem mal, pois o ingrediente vilão da vez, normalmente é perdoado no tempo seguinte. Agora estão até querendo perdoar a manteiga, dá pra acreditar? Evidentemente, não dá para relativizar tudo, perdoar tudo que a gente põe goela abaixo. Certos produtos são quimicamente criminosos, fazem mal mesmo, principalmente alguns produtos industrializados. Certas cachaças não fazem mal apenas no dia seguinte, fazem mal por muito mais tempo do que isso, já que utilizam as chamadas “cauda e cabeça” em seu processo, ou seja, metanol puro, levando àquele consumidor constante e incauto ao abraço da morte por cirrose. Em alguma medida, outras tantas bebidas conseguem driblar a vigilância pública e fazem mal de verdade, sem dó e sofismas.

          A confort food e o slowfood se unem ao vegetarianismo, à macrobiótica e à comida natural para afugentar o fast food, símbolo máximo da obesidade mórbida contemporânea. No entanto, a fastfood foi extremamente bem vinda e continua tendo sua graça e grande propriedade em todos os sentidos, inclusive nutricional. Afinal, quem descartaria um sanduiche de salsicha alsaciana num 1/3 de baguete, coberto de queijo gruyère picadinho, temperado com a melhor mostarda de Dijon? Não gosta de salsicha? Que tal um pasticcio de berinjela, uvas passas, cebola, tomate, pinolli, pimentão vermelho e berinjela, assados no forno, bem temperados com tomilho e azeite, recheando um sanduiche de pão rústico italiano?

         O gosto é evidentemente vinculado ao prazer e se o produto de maior qualidade não gera o mesmo prazer que o de menor qualidade, será avaliado como inferior por aquele que procura não apenas alimento no que come, mas sensações gratificantes de toda ordem psicológica e social. Confesso que conheço gente que tem especial tendência a gostar só do que os seus superiores gostam, assim como conheço gente que acha o máximo comer o que todos comem e gostam. A hierarquia pega o consumidor na sua falta de critérios, exatamente porque gosto é gosto. Numa ótima aula ministrada por Daniel Pinto na SBAV de São Paulo, todos fomos levados a concordar que o Lambrusco seco se harmonizava perfeitamente com sanduiche de mortadela, prática habitual na região de origem dos dois produtos, a Emilia Romagna. E vemos gente muito menos preparada do que o médico e professor citado a torcer o nariz para este produto tão vendido mundo afora.

          É enganosa a hierarquia do preço, que leva o ignorante a reconhecer mais valor no produto caro e menos no produto mais barato. Embora seja um princípio que encerra uma verdade relativa, deve ser usado com muita cautela. Um produtor que usa, para um dos seus vinhos, uma rolha maciça e grande para o seu vinho de guarda, que usa apenas barricas bordolesas de primeiro uso, cumpre requisitos de produção que permitem àquele vinho participar de um grupo de vinhos diferenciados, mas que não garantem um gosto superior ao seu outro vinho que usa barricas de quarto uso e screwcap. Eventualmente, o segundo é mais gostoso do que o primeiro. O que é garantido, é que o primeiro se portará melhor que o segundo, passado determinado número de anos de guarda. Esta é talvez a única certeza, no caso exemplificado.

           A composição do preço do vinho é regida exatamente da mesma forma que a composição de qualquer outro produto de mercado, ou seja, o valor que nele encerra, a saber, o custo real necessário para a sua produção em condições concretas de toda ordem, o sobre preço ou mais valia ou taxa de lucro socialmente aceita, mais injunções mercadológicas, como notas de avaliação dadas pelos certificadores, histórico de valor como os dos vinhos consumidos por pessoas admiradas e importantes – reis, presidentes, artistas de TV – e outros fatores mais conjunturais. O consumidor, porém, tem todo o direito de achar que o Romanée Conti é um vinho inferior ao malbec Santelmo… O que se pode fazer?

         Sobre o assunto, reproduzo, sem qualquer pretensão de esgotar o assunto – que, aliás, aponta para o infinito – um artigo publicado pelo o Estado de S. Paulo, em 09/08/2009, por Elias Thomé Saliba, sob o título de Passos Racionais da Incerteza –

Numa pesquisa de 2008, um grupo de especialistas deu nota alta para uma garrafa com etiqueta de US$ 90 e nota baixa para uma outra, com etiqueta de US$ 20, embora os sorrateiros pesquisadores tivessem enchido as duas com o mesmíssimo vinho. Até aí, nada de muito novo quanto à nossa capacidade de projetar expectativas: depois de ouvirem elogios a um filme, futuros espectadores tendem a gostar mais dele. A novidade é que, no mesmo momento do teste do vinho, a ressonância magnética mostrou que a área cerebral codificadora da nossa experiência do prazer, ficou muito mais ativa quando os voluntários tomavam o vinho que acreditavam ser o mais caro. Este é um, entre muitos e surpreendentes exemplos contidos em O andar do bêbado (Jorge Zahar, 264 pp., R$ 39 – Trad.: Diego Alfaro), do norte-americano Leonard Mlodinow. “Andar do bêbado”, metáfora usualmente empregada, desde Einstein, para designar o movimento aleatório das moléculas de água, serve para designar a maneira como os incontáveis avanços na informática, nanotecnologia e outras áreas vêm produzindo alterações radicais na compreensão do universo do acaso e do contingente.

Mais um texto do amigo e colaborador, agora com participação quinzenal aos sábados, Breno Raigorodsky; 59, filósofo, publicitário, cronista, gourmet, juiz de vinho internacional e sommelier pela FISAR. Para acessar seus textos anteriores, clique em Crônicas do Breno, aqui do lado.