Reflexões do Fundo do Copo – Bebericando Ensinamentos

breno3              Todos que vivem do vinho se vestem de uma autoridade impressionante para falar de tudo sobre vinho. Não me refiro apenas àquela vendedora de loja especializada, que se aproxima simpaticamente do cliente e ao se apresentar como vendedora com um largo sorriso no rosto dizendo “posso ajudar?” Todos do negócio, do motorista do caminhão que traz os produtos dos portos ao assessor para assuntos de contabilidade, todos se sentem em condições de sugerir um vinho que melhor harmoniza com determinado prato. A proximidade com bebida basta para que a pessoa faça um ar de entendido, porque ela pode citar quem é famoso e gosta de vinho, e isso gera uma aura de autoridade que impregna inclusive pessoas que sabem que pouco sabem.

            Mas não apenas os que vivem do vinho sabem dizer qual é a melhor fórmula para harmonizar. Pergunte ao seu colega aí ao lado, aquele que sempre tem alguma a dizer sobre o restaurante da hora, a loja de roupa mais quente do shopping, o happy hour mais concorrido. Ele certamente pode discursar sobre como o vinho X combina com o prato Y pelo tempo que for necessário! Porque entender de vinho e de harmonização é moda que grassa pelas terras do mundo inteiro. É universal e não é assunto restrito aos estudiosos, um pouco porque o principal da harmonização nada tem a ver com a precisão dos cientistas, mas tudo tem a ver com o mais comum dos bons sensos.

           Os entendidos aceitam duas formas de harmonia, por afinidade entre as propriedades do vinho e da comida, ou por contraste entre eles, descritas por autores de todas as origens, seguindo regras que misturam conhecimento laboratorial, histórico de harmonia e bom senso, num coquetel que aplica mais este ou mais aquele ingrediente conforme a história de cada um. José Ivan dos Santos, autor de dois livros “essenciais” de grande sucesso, publicados pela editora Senac SP e com quem dividi planos de trabalho conjunto, ensina a harmonizar igualmente por afinidade ou por contraste, no afã de reforçar determinado atributo presente no prato ou procurar no vinho uma correção a um determinado excesso, sem deixar de alertar que “não há casamentos perfeitos; o vinho e a comida não são exceção”. Faz sucesso, porque consegue agradar a todas as opiniões sem se comprometer com ninguém, ao contrário do personagem do moedor de farinha de uma fábula do La Fontaine “Le Meunier, son fils e l’Ane” que diz “é maluco quem pretende contentar, ao mesmo tempo, todo mundo e seu pai”.

          Quando dá alternativas para um lado e para o outro, quando mostra o lado incerto e paliativo das suas afirmações – que não são poucas – não afronta nenhuma certeza do consumidor, até porque não tem ele como ser autoritário em suas afirmativas… Porque afinal ele não é maluco para pretender contentar todo mundo e o pai, ao mesmo tempo, muito pelo contrário! Os harmonizadores que escrevem por ofício não devem ser crucificados por sugerir harmonia, um pouco daqui e um pouco dali: é possível respeitar a tradição regional, como os portugueses que bebem vinho tinto com bacalhau; por outro lado, que tradição seguir, se bebemos os brancos secos e ácidos, com o mesmo prato português, o peixe sem cabeça? Não se pode esquecer, é óbvio, os argumentos da untuosidade, do queijo, da madeira, do vinagre, do shoyu, da alcachofra, dos aspargos e todos os outros pretensamente definitivos…

           Tudo é mais relativo, quanto maior for o conhecimento, experiência e inteligência acumuladas nas reflexões. Parece ser o caso das que se encontra no livro oficial das academias dos Gastrônomos e da Culinária Francesa, publicado em 1971 em livro de bolso, sob o título Cozinha Francesa, Receitas clássicas de pratos tradicionais  (de onde, aliás, tirei a citação acima do La Fontaine) fica evidente a importância da tradição e do bom senso na hora de harmonizar, até porque existem fatores externos a este compromisso entre a bebida e a comida que podem influir ainda mais na escolha do vinho: o tamanho e a complexidade da refeição! Cada vinho e cada prato articulam-se uns com os outros, como músculos, nervos e ossos, uns com os da outra categoria e com os da sua própria condição. O que vem depois de uma salada… Ou melhor, o que contém a salada servida, combina com os ingredientes que compõem os pratos a seguir?

          Cabe refletir um minuto sobre a tradição e o bom senso, com os olhos no livro citado. Para a infelicidade dos conservadores, o “clássico”, que normalmente remete à tradição, foi moderno e transgressor algum dia… Antes de tornar-se clássico. E bom senso, ora, bom senso, nos dizeres de Antonio Gramsci em seus Cadernos do Cárcere, é um sentimento coletivo de um grupo social determinado, num momento da história igualmente determinada, um termômetro para saber quanto se está perto de uma nova mudança de mentalidade. Ou seja, mais uma vez, tanto o sentido da tradição e do clássico, quanto o sentido do bom senso estão em moto contínuo. Olhando de perto, quando o observador se confunde com o objeto de estudo, parecem coisas imutáveis e seguras. Olhando à distância ganham em movimento, desesperam aqueles que buscam alcançar a noção aristoteliana do “bom” como algo imutável.

          O “Cuisine Française” derruba toda a pose de gente que intenciona criar regras de casamento (mariaje) entre vinho e comida. Traduzido livremente diz logo em seu primeiro parágrafo “na verdade, não é preciso ser um grande mestre para escolher o vinho mais apropriado a um prato – servido sozinho – precedido de sopa e salada, seguido de queijo e sobremesa. Independente de grandes conhecimentos, trata-se de uma simples questão de bom senso…”. Logo depois, o tombo fica ainda maior para os cientistas e engenheiros da gastronomia definitiva “Comumente, crustáceos, peixes, vol-au-vent, quiches etc. são acompanhados de vinho branco, por esquecimento ou ignorância da principal razão desta escolha: somente o vinho branco seco pode preceder um vinho tinto sem comprometer a sua degustação!”(grifo meu)

        Ora, que beleza de ensinamento, mais do que harmonizar um prato com um vinho, o texto propõe harmonizar o vinho de agora com o vinho de daqui a pouco! Isto que é sabedoria de tirar o chapéu (se é que alguém continua usando esta peça do vestuário que algum dia cobriu as nossas ricas massas encefálicas)!. Bom senso sobre bom senso. Em dois parágrafos, dois ensinamentos que valem um livro inteiro sobre harmonização – siga o bom senso e sirva antes o vinho branco seco. Nenhuma razão é mais forte do que esta para comer entradas e pratos leves com vinhos brancos secos, por mais que estes possam ser o melhor acompanhamento líquido para os deliciosos frutos dos mares e dos rios.

      Melhor seria dizer:

  1.  recomende o óbvio quando seu conhecimento de vinho e comida for muito maior do que os que lhe pedem conselhos.
  2.  beba literalmente o que quiser quando estiver sozinho.

Beba até espumante demi-sec com feijoada, mesmo que todos os seus poros recomendem uma bela cachaça com limão espremido, seguido de um chopp em caneca de prata!

Mais um inteligente texto do amigo e colaborador, agora com participação quinzenal aos sábados, Breno Raigorodsky; 59, filósofo, publicitário, cronista, gourmet, juiz de vinho internacional e sommelier pela FISAR. Para acessar seus textos anteriores, clique em Crônicas do Breno, aqui do lado.