Reflexões do Fundo do Copo II – Presente Certo Na Hora Errada

              Foi na pizzaria Bráz. Que triste estar lá com o amigo aniversariante e sua mulher, mais os amigos do amigo e os amigos de sua mulher. Como fui infeliz… Levei um Chianti Clássico Giorgio I (Primo)1994, um vinho que adquiri ainda na época em que o Jorge Lucki era sócio de uma importadora, quando o Real havia emparelhado com o Dólar, num efêmero momento maravilhoso para quem gosta de vinho! Certamente uma prova de apreço e consideração pelo aniversariante e também orgulho para quem presenteia por saber escolher tão bem!

             Apesar de levar a fama de SuperToscano, o Giorgio I é um vinho que leva a tarja com o galinho preto exclusivo dos DOCG Chianti Classico*, um espécime com excelente pedigree**. Não se tratava de nenhum ilustre desconhecido, fazia parte daquele lote que a gente se entusiasma faz um esforço e divide a caixa com amigos, 3 garrafas para cada um. E uma das minhas 3, tinha me representado com muita classe em uma degustação de vinhos toscanos, cujo “pingo” era dispor de uma garrafa para participar. 20 comensais torcendo para seus 20 vinhos.

            Pois o tal Giorgio I chegou entre os melhores, concorrendo contra vinhos muito mais conhecidos no Brasil, como os chiantis das grandes importadoras, os SuperToscanos e até 3 Brunellos. O comandante em chefe daquela degustação, o Vincenzo Venitucci, proprietário do Familia Venitucci, polêmico restauraurador de consagrada competência (anos e anos com duas estrelas do Guia Quatro Rodas), um filho pródigo de Lucca, Toscana, vaticinou para que os 20 participantes bem ouvissem – Os melhores foram os chiantis, não foram? Grandes chiantis são previsíveis ano a ano… Quem sabe uma de suas principais características. Diferente dos seus irmãos de pele grossa e grossa pretensão, os instáveis Brunello di Montalcino!

           Presente dado, o presenteado não sabia da importância do vinho que acabava de ganhar, um produto 7 vezes “3 bichieri” para o Gamberorosso**. Agradeceu sem prestar muita atenção, e foi logo pedindo ao garçom que abrisse a tal garrafa que ele comemoraria lá mesmo, com aqueles 8 amigos, com aquela comida. Afinal, em sua memória tudo estava de acordo, nada melhor do que um chianti clássico numa pizzaria para comemorar! Tentei usar de toda a minha autoridade (?) de grande conhecedor (?) de vinhos, em vão, dizendo que em tese ele tinha toda a razão do mundo, mas que aqui estávamos falando de um vinho muito importante, exigente. Todos me chamaram de pretensioso, metido, enochato e outras coisas que o editor desta prestigiosa revista virtual não permite publicar. Apesar de não ter a típica e ultrapassada garrafa gorda revestida de palhinha, que por muitos e muitos anos foi marca registrada deste vinho tão aclamado pela colônia italiana ultramar, tratava-se mesmo de um chianti, vinho de cantina, vinho de pizzaria, vinho de mesa, melhor companhia líquida para a sólida macarronada da mama, aos domingos!

           O Giorgio I é um chianti, mas pouquíssimos chianti são como um Giorgio I. Balbuciei que não era vinho para ir se abrindo assim e tomando como se fosse Coca-Cola… Tarde demais. O mau resultado não se fez esperar. Fui ouvindo reclamações de todos, que de bocas cheias de pizza calabresa e mussarela, pediam para que eu fosse imediatamente destituído do cargo honorário de “Entendido em Vinhos” da turma! Envergonhado e ofendido com tanta imprecaução, mas tranqüilo – como devem permanecer os que são mártires das boas causas – mantive-me impávido colosso, bebericando quieto, não o grande vinho que trouxe, mas um outro que pedi, um vinho simples e camarada, um chianti jovem servido em taça, feito para acompanhar o pedaço de pizza quente. Ao meu lado mantive protegido o motivo desta reflexão numa outra taça, intacto, à espera do momento certo para ser devidamente apreciado, uma hora depois!

Por Breno Raigorodsky

* Não está entre os seguidores do Antinori que, com seu Tignanello abriu a porteira daqueles que querem usar o terroir toscano para fazer vinhos com uvas internacionais. O DOCG cedeu hoje em dia e até aceita 20% de uvas autóctones menos importantes ou Cabernet sauvignon e merlot, mas mantém 80% de uva Sangiovese, com um mínimo de 12,5º de álcool para o vinho reserva contra apenas 12º para o vinho jovem, com um descanso de 24 meses, dos quais ao menos 3 em madeira, com as vinhas no território delimitado entre Sangiminiano e Siena.

**um dos mais sérios certificadores de vinho da Itália, co-autor do Slowfood